sábado, 24 de março de 2012

Relação entre «Candide», de Voltaire, e «Discours sur l´origine et les fondements de l'inégalité parmi les hommes», de Rousseau


            Candide e Discours sur l'origine et les fondements de l´inegalité parmi les hommes são obras de caráter filosófico em que é feita uma crítica à injustiça social vigente no séc. XVIII. Candide é um romance de viagens e de aprendizagem que convida o leitor a fazer uma reflexão sobre o problema da religião e a sua influência no quotidiano. No Discours, Rousseau defende que a causa da desigualdade entre os homens é a civilização, que considera a causa de todos os males. Defende, portanto, o regresso ao estado natural do homem.
            Voltaire trata, em Candide, a condição miserável do homem. A felicidade é-nos retratada em Thunder-ten-tronckh, onde reina o amor (Pangloss/ Paquette e Candide / Cunégonde); no Eldorado, onde existe harmonia, em oposição ao resto do mundo; e no jardim de Propontide, onde o amor já está arruinado e onde as personagens cultivam o jardim da sua quinta para não se sentirem entediadas.
 Voltaire pretende mostrar que a felicidade nem sempre é possível. Candide, iludido de início com a perspectiva de encontrar um mundo melhor, acaba dececionado com o mundo, sem sentir mais, no final, amor por Cunégonde. Voltaire mostra assim o seu ceticismo em relação aos sentimentos e às emoções. Conclui-se que não vale a pena termos muitas ambições nem amarmos excessivamente. Não podemos mudar o mundo de forma imediata, mas apenas cuidar do nosso «petit jardin».
O mundo, um caos de horrores para Voltaire, é-nos retratado através das catástrofes naturais que atingem o homem. Exemplos disso são a tempestade e o tremor de terra, causadores da morte de Jacques e da ruína de Lisboa, as epidemias de que sofrem Pangloss e a velha,  o canibalismo, quando os vinte guardas do sultão de Constantinopla comeram dois eunucos e cortaram as nádegas às mulheres para se alimentarem delas, e quando Candide e Cacambo  foram amarrados com cordas para serem mortos. A cena de canibalismo pretende mostrar a insensibilidade dos homens uns para com os outros, consequência da ignorância.
            Voltaire deixa perpassar o seu anticlericalismo, na medida em que considera a Igreja a origem de todo o mal: a Inquisição é-nos retratada por Voltaire através da celebração de um auto de fé, em Lisboa, para que a terra deixasse de tremer. Durante essa celebração, Candide foi açoitado, o biscaio  e os dois homens que não comeram porco foram queimados e Pangloss foi enforcado por não acreditar no pecado original e achar que tudo no mundo está bem e que não podia ser melhor. Esta é a teoria que o filósofo defende ao longo de toda a obra e que Voltaire critica com ironia. O otimismo deve ser combatido, não devemos resignar-nos ao mal.
  Voltaire critica, assim, a intolerância religiosa, o fanatismo da Igreja, o princípio da obscuridade e a superstição, que ele nomeia de «l'infâme». A superstição é contra a humanidade, constitui um obstáculo à felicidade humana.
O problema das guerras é-nos retratado por Voltaire em várias cenas: a guerra da Holanda, a guerra entre árabes e búlgaros, em que é evidente a devastação; as cinquenta guerras civis das filhas do imperador Muley-Ismaël em Marrocos; a guerra em Azof contra os russos; e o combate naval entre o navio holandês e o navio espanhol, que se afundam. O autor pretende mostrar que a humanidade se está a degradar e que os homens são os responsáveis pela sua própria infelicidade. É a ambição dos príncipes pelas riquezas dos outros países que leva à destruição, à guerra  e à morte.     
            Voltaire, enquanto defensor da liberdade do homem, insurge-se contra a escravidão, que é condenada através da cena do escravo de Surinam, sem uma mão e sem uma perna porque, segundo as suas próprias palavras, é hábito dos patrões punir os seus escravos com estas mutilações, quando tentam fugir. Voltaire considerava que a escravidão era contra a humanidade uma vez que os homens são livres por natureza. Por outro lado a escravidão levava à perda de valores morais dos indivíduos.
            A maldade é outro mal censurado por Voltaire. Ele não acredita que o homem é naturalmente bom. Podemos constatar isso ao longo da obra: quando Candide é roubado em Surinam por um patrão que, supostamente, o ia conduzir a Veneza; quando tem de pagar dez mil piastras pelo barulho que fez ao bater à porta e outras tantas pela audiência; e quando um pensador, no teatro, ao lado de Candide, põe defeitos à representação dos atores apesar de estes estarem a desempenhar muito bem o seu papel.
            A violência política também nos é mostrada através de atentados, execuções e revoluções. Todo este ambiente de morte pretende mostrar que o mal existe à face da terra e que muita gente morre sem necessidade. Por outro lado, Voltaire mostra-se contra a forma de governo, que considera despótica, pois tolera e encoraja todo este ambiente de degradação, justificando-o com a providência divina.
            Ao mostrar-nos todo este cenário de devastação, Voltaire tem por objetivo fazer os seus leitores refletir sobre o mal. Para ele, defensor da liberdade de pensamento, cada sujeito devia ter o direito de pensar por si, de fazer uso da razão. Todos os homens são dotados de capacidade crítica, faculdade de julgamento e moral para poderem distinguir o que é justo do que é injusto. A moral é, segundo Voltaire, independente da lei, de contratos e da religião. Ela existe em todos os homens. São as ideias morais que constituem o conjunto de conhecimentos necessários aos homens, todos os outros são desnecessários.
            No artigo Discours sur l'origine et les fondements de l'inegalité parmi les hommes, Rousseau aborda o problema da desigualdade entre os homens, questionado no séc XVIII pelos filósofos, e que ele considera ser uma consequência da civilização.
            Rousseau acredita que o homem, antes de se ter estabelecido a sociedade, era originalmente bom e que o mal surgiu quando a natureza foi submetida à lei. O autor do artigo considera que seríamos muito mais felizes no estado natural, pois evitávamos muito mal. Para ele é a civilização que traz as doenças. No estado natural, só teríamos como moléstias as feridas e a velhice. Defende ainda que o estado natural é o mais próprio à paz e, portanto, o mais conveniente ao género humano.
            Segundo Rousseau, não é o freio da lei, mas a acalmia das paixões e o desconhecimento do vício que impedem os homens de fazer mal: o homem no estado primitivo tem bons sentimentos, como a piedade, e os instintos são bons. Rousseau coloca mesmo a questão se a desordem e os crimes não surgiram com as leis, que pretendiam conter a violência das paixões.
            O autor acaba a primeira parte do artigo defendendo que, no estado natural, não é tão propícia a desigualdade como no estado civilizado: no homem civilizado há mais diferenças a nível da cultura que não existiriam no estado selvagem e, por outro lado, há também a servidão, desconhecida pelo homem natural.
            A segunda parte do artigo é dedicada às possíveis causas da desigualdade entre os homens. Segundo o autor, ela começou quando surgiu a ideia de propriedade. Os homens começaram a guerrear-se para se apoderarem das cabanas que construíam para se abrigarem. As cabanas tornaram-se, assim, um modo de distinção das famílias.
            Quando se começaram a criar ideias de mérito e de beleza e a formar sentimentos de preferência, surgiu a discórdia. Nasceram a vaidade e o desprezo, a inveja e a vergonha, surgiu a ideia de consideração e, como consequência, surgiu a vingança e assim os homens tornaram-se cruéis.
            Com a propriedade, o trabalho tornou-se necessário e surgiu a escravidão e a miséria. O homem, que era livre e independente, foi sujeitado à natureza e aos seus semelhantes. Foi decidido entre os homens que se criariam leis e se protegeriam e defenderiam os membros da associação, de modo a criar harmonia. Rousseau considera que foram as leis que destruíram a liberdade natural do homem ao fixarem a lei da propriedade e da desigualdade.
            Rousseau considera que foi uma grande perda o homem ter renunciado ao maior dos bens que pode ter, a liberdade. Afirma que o homem no estado natural prefere a liberdade à sujeição tranquilizante do homem civilizado.
            Segundo Rousseau, o governo é de natureza ilegítima porque consiste na lei do mais forte, o poder é arbitrário, há corrupção. Por outro lado, o poder soberano, que é sustentado pela vontade divina, intervém para tirar aos sujeitos o direito de dispor. Os cidadãos foram, assim, sacrificados à felicidade do Estado.
            Voltaire e Rousseau diferem em vários aspetos: Voltaire, em Candide, dá a conhecer o mal, que crê vir sobretudo da Igreja. É ela que está na origem da guerra, da injustiça social e a responsável pelo cenário devastador descrito na obra. Por outro lado, a Igreja também condena as paixões e o amor, que Voltaire considera essencial à condição humana como consolo dos males que existem na terra. Rousseau considera que o mal está, não na Igreja, mas nas leis que afastam o homem da sua natureza, que o fazem viver fora das suas emoções, que o corrompem. Voltaire valoriza a razão enquanto que Rousseau atribui mais valor ao sentimento, ao qual dá a primazia. Segundo Voltaire é preciso iluminar os espíritos dos homens para combater o fanatismo e a intolerância religiosa. Rousseau pensa que é necessário voltar ao estado natural e valorizar o sentimento para que haja felicidade.
            Concluindo, estes dois filósofos debatem-se contra a tirania do governo, que consideram despótico, e defendem uma maior justiça social em que este respeite a vontade da nação, em que haja liberdade e igualdade entre os homens.
                                              
Bibliografia
GROETHUYSEN, Bernard, Philosophie de la Révolution Française précédé de Montesquieu, Gallimard, Paris, Outubro, 1992.
ROUSSEAU, Jean-Jacques, Du Contrat Social, Écrits politiques, vol. III, Gallimard, s/l, 1964.
VOLTAIRE, Candide, Classiques Bordas, s/l, Abril, 2003.

sábado, 10 de março de 2012

Caraterização da personagem de Roberto Clark, em «Mau Tempo no Canal», de Vitorino Nemésio




             Irmão de D. Catarina Clark e filho de Charles William Clark, Roberto Clark, de 37 anos de idade, era «alto, espadaúdo», de «sobrancelhas ruivas, debaixo das quais espreitavam dois olhinhos sem cor precisa» (Cap. IX, p.107), de «olhos azulados» e «gordinho».
            Tendo vivido em Inglaterra desde que emigrara da Horta aos 17 anos, e onde trabalhava como empregado num banco, Roberto desenvolvera um caráter calmo e moderado, ordeiro e conciliador, prático e despretensioso. Era um homem solteiro, meio açoreano, meio britânico, culto, músico e desportista. De índole pachorrento e sério, estava sempre fumando o seu cachimbo.
            O ambiente soturno do casarão do pai não agradava a Roberto, que, para animar o velho Clark, pensara em dar um baile para os amigos e parentes, os quais não via há anos. Decidiu-se que a festa seria no Granel.
       Roberto mostra-se participativo e colaborador ao ajudar na arrumação do Granel. Na noite da festa, Roberto revela os seus conhecimentos musicais ao condescender a tocar uma ária de Haendel, Nos Bosques Aprazíveis. Ao observar a imagem de sua sobrinha Margarida, refletida no espelho fusco do Granel, com o vestido de baile da avó Margarida Terra, Roberto assume um «olhar paternal e impassível» (Cap. X, p.116). Roberto «media o salão de largo a largo» (Cap. X, p.116). Muito atento ao que o rodeia, absorve-se na conversa sobre a hereditariedade de Margarida. Vêm-lhe à lembrança recordações de sua mãe, da vida que levou, fechada em casa, quase sem sair à rua, privada da vida social.
            Roberto gostava de afetar uma certa indiferença pelas coisas do espírito, mas era um homem inteligente, culto, muito dado aos livros. De Londres trouxera o conhecimento enciclopédico, a informação das coleções práticas, das magazines. Lia sobretudo romances, literatura de selva e de navios, tendo trazido para a Horta metade da sua mala com livros, os quais Margarida devorara um pouco.
           Possuindo conhecimentos, Roberto sabia em que condições se processava o contágio da peste que atingira enormemente a cidade da Horta «Mas Roberto insistia que não havia contágio da peste senão ao pé de doentes ou tocando-se nas roupas infetadas» (Cap. XI, p.123). Tinha um sentido muito prático: face à peste ou se fazia a vida habitual ou então desertava-se a cidade. Não era a favor de fechar a gente nova em casa, alimentando o terror.
           Ao contrário de Diogo Dulmo, Roberto Clark chega à cidade com fama de rico, sendo estimado por todos «O Roberto chegou com fama de rico. É tão estimado!». Sempre responsável para com o pagamento das dívidas, difere muito em relação a Diogo Dulmo, arruinado, sem dinheiro, endividado. É por ser rico que Diogo Dulmo tenta persuadir a filha a casar-se com o tio, Roberto Clark, para que os bens fiquem em família «Escuta o pai: o tio Roberto vem aí (...). Ele é um rapaz sério, o que não acontece a todos; sim, porque uma hora cai a casa...entendes?(...) Se ele te agrada, deixa...casa! que fica tudo em família...» (Cap. IV, p. 74).
     Roberto é uma personagem propensa à distração, de temperamento fechado, misterioso e enigmático, assumindo frequentemente «ares de mistério» (Cap. XIV, p.145).
            O seu feitio é tanto doce como brusco, reagindo às notícias com fervor, nomeadamente quando recebe uma carta de Marr sobre uma possibilidade de emprego para Margarida, em Inglaterra.
            De temperamento solitário, o tio Roberto gosta de se refugiar no seu canto, sentindo uma grande tristeza em relação à situação financeira de Diogo Dulmo «Roberto fechou-se no seu quarto (...) Uma grande tristeza tomava-lhe os gestos hesitantes, o olhar como que ausente» (Cap. XXV, p. 233)
       Aquando da fuga de Pedro do colégio, em Lisboa, Roberto mostra-se apaziguador e pacífico ao conter as iras de Diogo Dulmo face ao seu filho, com um sorriso e a mão no ombro do sobrinho.
         Ao regressar à Horta, devido ao estado de saúde do pai, Roberto começou a desenvolver um bom relacionamento com Margarida, sua sobrinha, e protagonista de Mau Tempo no Canal. O tio Roberto mostra-se generoso para com ela quando se propõe a ajudar no pagamento de um novo cavalo para o lugar da Jóia «Com o dobro do dinheiro da Jóia arranja-se um bom cavalo. Eu ponho o resto. É o meu presente de anos» (Cap. IX, p.107).
          Roberto oferece oportunidades e soluções tanto para os problemas de Pedro, ao propor levá-lo para a City  e empregá-lo lá, «Roberto então falou no vago projeto de levar Pedro consigo, e empregá-lo na City. (...) metia-o uns tempos só com rapaziada de criket e camping; fazia-o gente» (Cap. IX, p.109), como para a sobrinha, à qual propôs arranjar emprego em Kensington numa clínica de Marr, como enfermeira, ou secretária, ou ainda ajudante da regente «O Marr tem a clínica em Kensington; está sempre a admitir enfermeiras, raparigas de sociedade. E mesmo que fosse no escritório (...) Ias para lá como ajudante da regente; fazias as honras da clínica...» (Cap. XIV, p.147).
         Há um contraste a nível de personalidade entre o tio Roberto e a sua sobrinha Margarida. «Os hábitos dela, a sua desenvoltura, tinham-no conquistado» (Cap. IX, p.110). Margarida pertencia a «um mundo extenso e difícil» (Cap. IX, p.110). Roberto nutre por ela sentimentos de admiração. A presença de Margarida enchia o tio, apesar de serem de temperamentos diferentes.
             Roberto assemelhava-se a Mary Low, uma amiga de Inglaterra, a quem estava ligado pelos mesmos gostos «e até pela sede de silêncio e de acordo, que era o único excesso ou desmando do seu coração» (Cap. IX, p.110).
              Roberto tinha para com Margarida uma doçura grave e leal «(...) curvava-se sobre ela com uma doçura grave; os seus olhos tinham um brilho penetrante e leal” (Cap. XIX, p.146). A sua relação com Margarida é muito próxima, como que tenta ser o seu confidente, querendo ajudá-la nos seus problemas, dando-lhe o seu apoio moral, a sua solidariedade e a sua amizade «... E em casa do Warren; não se tirava de ao pé de ti. Porque é que não hás-de ser franca?...Então não sou teu amigo?» (Cap. XIV, p.146)
            Roberto é a personagem que mais proporciona à sobrinha momentos de evasão e libertação por ela desejados, nomeadamente através do tempo que passam juntos a andar a cavalo e dos momentos dedicados à navegação.
           Margarida reconhece no tio a amizade e dedicação que ele lhe proporciona, afirmando que ele a enche de mimos e presentes para além de a ensinar a andar a cavalo «Não é só a cavalo; é em tudo! Enche-me de mimos e presentes».(Cap. X, p.117).
            A preocupação que Roberto tinha para com a sobrinha levou-o a tomar a decisão de partir para Inglaterra sem dizer nada, para que a sobrinha pudesse optar por André Barreto, deixando-o associar-se à firma.
        Porém, sem que tenha partido, ocorre a sua morte trágica, na casa da Pedra da Burra, devido a um contágio de peste provocada pela pulga de um rato, talvez no Granel «O tio Roberto falecera nessa madrugada, de peste, na casa da Pedra da Burra (...) Viera com tenção de passar uma noite nas Vinhas; contagiara-se não se sabia bem onde nem como: talvez no Granel, de um rato» (Cap. XXXVI, p. 318).
      Por tudo isto Roberto Clark é, sem dúvida, uma personagem de relevo na obra Mau Tempo no Canal, onde entra e se mantém até à sua morte, quando é vitimado pela peste.


Bibliografia:
Vitorino Nemésio, Mau Tempo no Canal, Obras completas, Vol. VIII, Imprensa Nacional Casa da Moeda, Maio 1994.