segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Breve exposição sobre o conto "O Cavaleiro da Dinamarca", de Sophia de Mello Breyner Andresen



Sophia de Mello Breyner Andresen (Porto, 6 de Novembro de 1919 – Lisboa, 2 de Julho de 2004) é um dos maiores símbolos da literatura moderna portuguesa, tendo sido a primeira mulher portuguesa a receber o Prémio Camões, em 1999. Escreveu em verso as obras: Poesia (1944), Dia do Mar (1947), Coral (1950), No Tempo Dividido (1954), Mar Novo (1958), O Cristo Cigano (1961), Livro Sexto (1962), Geografia (1967), 11 Poemas  (1969), Grades  (1970), Dual  (1972), O Nome das Coisas  (1977), Ilhas  (1989), Obra Poética, 3 vols. (1990-1991), Musa (1994). É autora dos livros de contos para crianças e jovens: A Menina do Mar (1957), A Fada Oriana (1958), Noite de Natal (1960), O Cavaleiro da Dinamarca (1964), O Rapaz de Bronze (1965), O Tesouro (1968), A Floresta (1969), Contos da Terra e do Mar (1984). A obra Contos Exemplares (1962) destina-se a adultos.
            O conto O Cavaleiro da Dinamarca é uma narrativa infanto- -juvenil que procura traçar o percurso de um cavaleiro dinamarquês que, deixando a sua família, enceta uma peregrinação à Terra Santa. A narrativa conta-nos as peripécias dessa viagem, bem como o seu regresso ao lar.
            A narrativa inicia-se durante uma noite de Natal, numa floresta dinamarquesa, de onde é originária a personagem principal, a qual vai realizar um itinerário que vai compor uma narrativa com uma duração de dois anos e com um espaço muito variado, mas que permite uma certa circularidade. A narrativa termina no mesmo ponto de partida, a floresta, e no mesmo dia, na noite de Natal.
            O Cavaleiro deixa, na Primavera, a sua floresta e dirige-se para o porto mais próximo de onde embarca e chega às costas da Palestina, seguindo dali com outros peregrinos para Jerusalém, onde visita os lugares santos. Permanece dois meses na Palestina e, em fins de Fevereiro, inicia a viagem de regresso: parte para Jafa, na companhia de outros peregrinos, entre os quais um mercador de Veneza. Após uma breve tempestade, chegam à cidade de Ravena, nas terras de Itália. Daí seguem para Veneza onde o Mercador o aloja no seu palácio. Passa por Ferrara e por Bolonha em Abril e, no princípio de Maio, chega a Florença, onde é hospedado pelo banqueiro Averardo, para o qual trazia uma carta de recomendação enviada pelo Mercador. Daí segue para Génova, parte em viagem até Bruges e chega à Flandres no Inverno, de onde parte para Antuérpia com uma carta de recomendação do banqueiro Averardo para um negociante flamengo que o acolhe em sua casa. Após uma viagem dura e de frio, o Cavaleiro chega, na antevéspera do Natal, ao fim da tarde, a uma pequena povoação próxima da sua floresta e, na madrugada do dia seguinte, o dia 24 de Dezembro, o Cavaleiro parte para a floresta e chega então à pequena aldeia dos lenhadores. Seguindo o curso de um rio, procura chegar a sua casa, o que acontece no final do conto. Este é o percurso do Cavaleiro.
            As diferenças entre a viagem da ida e a viagem de regresso são claras e gritantes: o movimento de ida é motivado pelo sentido religioso do Cavaleiro que anuncia durante a ceia de Natal a sua intenção de visitar os lugares santos e passar o Natal seguinte na gruta de Belém; pelo contrário, a viagem de regresso permite ao Cavaleiro a obtenção de vários conhecimentos. O enriquecimento do Cavaleiro acontece a vários níveis e de várias formas: pela descoberta de novas terras, hábitos e costumes e pelo contacto com outros homens, com outros conhecimentos e com as suas histórias, fruto de outras realidades. O Cavaleiro mostra-se espantado e maravilhado com tudo o que vê e ouve.
           Se a beleza arquitetónica de Ravena surpreende o Cavaleiro, mais ainda ele se espanta com a beleza de Veneza. O Cavaleiro deslumbra-se com os canais onde deslizam as gôndolas, com a arquitetura, com o modo de vestir dos venezianos. À noite, no palácio do mercador de Veneza, prova ricos manjares.    
Florença é outra cidade que surpreende o protagonista pela sua beleza geográfica e pela sua riqueza arquitetónica e cultural. Nela o cavaleiro viu torres, campanários, cúpulas, diversas lojas, praças largas, estátuas e visitou conventos, palácios, bibliotecas e igrejas. Em casa do banqueiro Averardo pôde verificar uma preciosa biblioteca e lindos quadros. Aos serões acumulava conhecimento ao ouvir “as sábias conversas dos amigos de Averardo” sobre fenómenos naturais, ciências, arte, poesia, música, arquitetura.
            Tendo adoecido a caminho de Génova, bate à porta de um convento, onde é cuidado pelos frades e pode assim conhecer a realidade dos conventos: ouvia os cânticos religiosos e admirava as pinturas dos frescos. A paz que reinava no convento deu forças ao cavaleiro de tal modo que o ajudou a recuperar.
           Em Antuérpia, o Cavaleiro conhece, em casa do negociante da Flandres, uma nova gastronomia: espanta-se com o paladar da comida temperada com especiarias desconhecidas e surpreende-se com a abundância de bens preciosos como as pérolas, o oiro e a pimenta.
          Outra forma de obtenção de conhecimentos é através de uma série de narrativas encaixadas na narrativa principal. A primeira é a narrativa do mercador de Veneza, que surge a propósito da pergunta do Cavaleiro sobre quem morava no palácio, do outro lado do canal. Então o veneziano responde que mora lá Jacob Orso e seus criados e conta a história de Vanina que em tempos também lá morava com ele, mas que, por amor, fugiu com Guidobaldo. Segue-se a narrativa de Filippo, um dos amigos do banqueiro Averardo, em Florença, que surge a propósito de uma discussão sobre a obra de Giotto, a meio do jantar. Questionado pelo Cavaleiro, Filippo explica que Giotto foi um pintor, discípulo de Cimabué, de tal modo célebre no seu tempo que Dante fala dele n’ “A Divina Comédia”, poema onde conta a sua viagem através do reino dos mortos. A última é a narrativa de um dos capitães dos navios do negociante flamengo que recebe o Cavaleiro em Antuérpia e que conta a sua experiência de navegador pelas costas de África.
          Fulcral no conto em análise é a questão da religiosidade. São vários os momentos em que as personagens, sobretudo o Cavaleiro, dão conta do seu Cristianismo, da sua Fé inabalável e do seu amor a Deus, sendo por Ele recompensadas com milagres ou outros acontecimentos que denotam uma intervenção divina. O Cavaleiro mostra o seu amor a Deus quando decide passar o Natal na gruta de Belém onde rezou toda a noite. Também na viagem de regresso, perdido no meio dos perigos da floresta, reza a Deus a oração dos Anjos: “- Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens de boa vontade.” A fé em Deus é tranquilizante para o Cavaleiro. Na gruta de Belém, após ter rezado, é recompensado: ”Então desceu sobre ele uma grande paz e uma grande confiança e, chorando de alegria, beijou as pedras da gruta” (p. 13). Deus ouve as preces do Cavaleiro e responde ao seu pedido de proteção ao intervir, fazendo surgir diante dele, na floresta, um triângulo iluminado que o orientaria no regresso a casa.
            No conto, o amor e a noção de família surgem como valores primordiais na vida do Homem, neste caso do Cavaleiro. Apesar de ausente durante grande parte da narrativa, a família do Cavaleiro permanece na sua memória, fazendo-o correr todos os riscos necessários ao cumprimento da promessa de regressar a casa. É por amor à família e respeito pela promessa que a ela fizera que o Cavaleiro recusa os convites do Mercador de Veneza, do banqueiro de Florença e do negociante flamengo para que se associasse aos seus negócios.
           Sendo um conto que circulou de boca em boca pelos países do Norte, O Cavaleiro da Dinamarca contém caraterísticas da literatura oral e tradicional. Verificamos assim a tendência para estruturas de conteúdo tipificadas, a escassez da componente descritiva das personagens e dos lugares visitados pelo Cavaleiro, centrando-se mais a narrativa na acção e no diálogo, privilegiando a expressão simplificada baseada no substantivo e no verbo: “Nessa floresta morava com a sua família um Cavaleiro. Viviam numa casa construída numa clareira rodeada de bétulas” (p. 5).
Presentes no conto estão também algumas expressões formulísticas auxiliadoras da memória: ”Ali rezou toda a noite”, “Rezou muito, nessa noite, o Cavaleiro” (p. 13), “Viram aqueles que estão cobertos por chuvas de lama, viram os que são eternamente arrastados em tempestades de vento, viram os que moram dentro do fogo e viram os traidores presos em lagoas de gelo.” (p. 36)
Como característica do conto tradicional, na obra em questão, temos a indeterminação do espaço: “Passado o Natal o Cavaleiro demorou-se ainda dois meses na Palestina visitando os lugares que tinham visto passar Abraão e David, os lugares que tinham visto passar a Arca da Aliança, o cortejo da Rainha do Saba e seus camelos carregados de perfumes, os exércitos da Babilónia, as legiões romanas e Cristo pregando às multidões” (p. 14), do tempo: “Há muitos anos, há dezenas e centenas de anos” (p. 5), e das personagens centrais: o Cavaleiro, o mercador de Veneza, o banqueiro Averardo e o negociante flamengo não têm um nome próprio, não são caracterizadas nem física nem psicologicamente.           
         Outra característica do conto é ainda a brevidade da narrativa, a economia e a elementaridade do universo semântico, que caracterizam o discurso. Também é de notar a frequência do adjectivo belo: “belas igrejas”, “a rapariga mais bela de Veneza”; e de maravilhoso: “maravilhoso perfume”, “quadros maravilhosos”.
            A forte densidade simbólica das componentes figurativas através do recurso a “motivos-tópicos” e a “leis tradicionais da épica” é outra caraterística própria do conto. Assim, temos a presença de números simbólicos da tradição como o sete, número da pluralidade das coisas: “sete homens com sete punhais”, “sete planetas”; e o três: “E daí a três dias”, “três pequenos cofres” , “três quilómetros de marcha” ; o “pão com mel” e o “leite quente”, alimentos muito importantes na Bíblia, sendo o mel e o leite alimentos de origem animal, extraídos tal qual da natureza. Simbólicos são também os nove círculos do inferno e os nove círculos do céu por onde Dante passa durante a sua viagem ao reino dos mortos. A floresta, o cavalo, o triângulo de estrelas luminosas, a árvore e a fogueira são outros elementos de grande carga simbólica. A floresta representa para o Cavaleiro um lugar de perigo. É lá que ele é confrontado com animais perigosos: os lobos, ligados ao fantástico, e o urso. O cavalo acompanha sempre o cavaleiro na viagem de regresso: o cavalo que o mercador lhe oferece e o cavalo que um amigo da povoação vizinha lhe empresta. A lareira em casa do Cavaleiro, em casa do banqueiro e, no fim do conto, em casa dos lenhadores, transmite calor e alegria.
            A assinalar a presença do sobrenatural temos a oração dos Anjos que o Cavaleiro julga ouvir, cantada por multidões, na gruta; a viagem sobrenatural de Dante através do reino dos mortos, a sombra de Virgílio que se dirige a Dante e o animal metade leão e metade pássaro que puxa o carro em que vem Beatriz, na narrativa de Filippo; as estrelas luminosas com que os anjos enfeitaram o abeto durante o caminho de regresso do Cavaleiro pela floresta. Como elementos do maravilhoso temos o pente de Vanina, os seus cabelos “loiros e tão compridos que passavam além da balaustrada” e a escada de seda por onde Vanina desce da varanda, na narrativa do mercador de Veneza.
            Por tudo o que foi exposto, podemos concluir que o conto O Cavaleiro da Dinamarca, é um exemplo de literatura oral e tradicional portuguesa, sendo de realçar a presença do maravilhoso e a carga simbólica que fazem dele uma obra de grande encanto.


Bibliografia
ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner, O Cavaleiro da Dinamarca, 34ª ed., Figueirinhas, Porto, 1994.
BARREIROS, António José, História da Literatura Portuguesa, vol. II - Séc. XIX-XX, 15ª ed., Bezerra – Editora, Braga, 1998.

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