Sophia de
Mello Breyner Andresen (Porto, 6 de Novembro de 1919 – Lisboa, 2 de Julho de
2004) é um dos maiores símbolos da literatura moderna portuguesa, tendo sido a
primeira mulher portuguesa a receber o Prémio Camões, em 1999. Escreveu em
verso as obras: Poesia (1944), Dia do Mar (1947), Coral (1950), No Tempo
Dividido (1954), Mar Novo (1958),
O Cristo Cigano (1961), Livro Sexto (1962), Geografia (1967), 11 Poemas (1969), Grades (1970), Dual (1972), O
Nome das Coisas (1977), Ilhas
(1989), Obra Poética, 3 vols.
(1990-1991), Musa (1994). É autora
dos livros de contos para crianças e jovens: A Menina do Mar (1957), A
Fada Oriana (1958), Noite de Natal
(1960), O Cavaleiro da Dinamarca (1964),
O Rapaz de Bronze (1965), O Tesouro (1968), A Floresta (1969), Contos da
Terra e do Mar (1984). A obra Contos
Exemplares (1962) destina-se a adultos.
O
conto O Cavaleiro da Dinamarca é uma
narrativa infanto- -juvenil que procura traçar o percurso de um cavaleiro
dinamarquês que, deixando a sua família, enceta uma peregrinação à Terra Santa. A narrativa conta-nos as peripécias
dessa viagem, bem como o seu regresso ao lar.
A
narrativa inicia-se durante uma noite de Natal, numa floresta dinamarquesa, de
onde é originária a personagem principal, a qual vai realizar um itinerário que
vai compor uma narrativa com uma duração de dois anos e com um espaço muito
variado, mas que permite uma certa circularidade.
A narrativa termina no mesmo ponto de partida, a floresta, e no mesmo dia, na
noite de Natal.
O
Cavaleiro deixa, na Primavera, a sua floresta e dirige-se para o porto mais
próximo de onde embarca e chega às costas da Palestina, seguindo dali com
outros peregrinos para Jerusalém, onde visita os lugares santos. Permanece dois
meses na Palestina e, em fins de Fevereiro, inicia a viagem de regresso: parte
para Jafa, na companhia de outros peregrinos, entre os quais um mercador de
Veneza. Após uma breve tempestade, chegam à cidade de Ravena, nas terras de
Itália. Daí seguem para Veneza onde o Mercador o aloja no seu palácio. Passa
por Ferrara e por Bolonha em Abril e, no princípio de Maio, chega a Florença,
onde é hospedado pelo banqueiro Averardo, para o qual trazia uma carta de
recomendação enviada pelo Mercador. Daí segue para Génova, parte em viagem até
Bruges e chega à Flandres no Inverno, de onde parte para Antuérpia com uma
carta de recomendação do banqueiro Averardo para um negociante flamengo que o
acolhe em sua casa. Após uma viagem dura e de frio, o Cavaleiro chega, na
antevéspera do Natal, ao fim da tarde, a uma pequena povoação próxima da sua
floresta e, na madrugada do dia seguinte, o dia 24 de Dezembro, o Cavaleiro
parte para a floresta e chega então à pequena aldeia dos lenhadores. Seguindo o
curso de um rio, procura chegar a sua casa, o que acontece no final do conto.
Este é o percurso do Cavaleiro.
As
diferenças entre a viagem da ida e a viagem de regresso são claras e gritantes:
o movimento de ida é motivado pelo sentido religioso do Cavaleiro que anuncia
durante a ceia de Natal a sua intenção de visitar os lugares santos e passar o
Natal seguinte na gruta de Belém; pelo contrário, a viagem de regresso permite
ao Cavaleiro a obtenção de vários conhecimentos. O enriquecimento do Cavaleiro
acontece a vários níveis e de várias formas: pela descoberta de novas terras,
hábitos e costumes e pelo contacto com outros homens, com outros conhecimentos
e com as suas histórias, fruto de outras realidades. O Cavaleiro mostra-se espantado e maravilhado com tudo o que
vê e ouve.
Se
a beleza arquitetónica de Ravena surpreende o Cavaleiro, mais ainda ele se
espanta com a beleza de Veneza. O Cavaleiro deslumbra-se com os canais onde
deslizam as gôndolas, com a arquitetura, com o modo de vestir dos venezianos. À
noite, no palácio do mercador de Veneza, prova ricos manjares.
Florença é
outra cidade que surpreende o protagonista pela sua beleza geográfica e pela
sua riqueza arquitetónica e cultural. Nela o cavaleiro viu torres, campanários,
cúpulas, diversas lojas, praças largas, estátuas e visitou conventos, palácios,
bibliotecas e igrejas. Em casa do banqueiro Averardo pôde verificar uma
preciosa biblioteca e lindos quadros. Aos serões acumulava conhecimento ao
ouvir “as sábias conversas dos amigos de Averardo” sobre fenómenos naturais,
ciências, arte, poesia, música, arquitetura.
Tendo
adoecido a caminho de Génova, bate à porta de um convento, onde é cuidado pelos
frades e pode assim conhecer a realidade dos conventos: ouvia os cânticos
religiosos e admirava as pinturas dos frescos. A paz que reinava no convento
deu forças ao cavaleiro de tal modo que o ajudou a recuperar.
Em
Antuérpia, o Cavaleiro conhece, em casa do negociante da Flandres, uma nova
gastronomia: espanta-se com o paladar da comida temperada com especiarias
desconhecidas e surpreende-se com a abundância de bens preciosos como as
pérolas, o oiro e a pimenta.
Outra
forma de obtenção de conhecimentos é através de uma série de narrativas
encaixadas na narrativa principal. A primeira é a narrativa do mercador de
Veneza, que surge a propósito da pergunta do Cavaleiro sobre quem morava no
palácio, do outro lado do canal. Então o veneziano responde que mora lá Jacob
Orso e seus criados e conta a história de Vanina que em tempos também lá morava
com ele, mas que, por amor, fugiu com Guidobaldo. Segue-se a narrativa de
Filippo, um dos amigos do banqueiro Averardo, em Florença, que surge a
propósito de uma discussão sobre a obra de Giotto, a meio do jantar. Questionado
pelo Cavaleiro, Filippo explica que Giotto foi um pintor, discípulo de Cimabué,
de tal modo célebre no seu tempo que Dante fala dele n’ “A Divina Comédia”,
poema onde conta a sua viagem através do reino dos mortos. A última é a
narrativa de um dos capitães dos navios do negociante flamengo que recebe o
Cavaleiro em Antuérpia e que conta a sua experiência de navegador pelas costas
de África.
Fulcral
no conto em análise é a questão da religiosidade.
São vários os momentos em que as personagens, sobretudo o Cavaleiro, dão conta
do seu Cristianismo, da sua Fé inabalável e do seu amor a Deus, sendo por Ele
recompensadas com milagres ou outros acontecimentos que denotam uma intervenção
divina. O Cavaleiro
mostra o seu amor a Deus quando decide passar o Natal na gruta de Belém onde
rezou toda a noite. Também na viagem de regresso, perdido no meio dos perigos
da floresta, reza a Deus a oração dos Anjos: “- Glória a Deus nas alturas e paz
na terra aos homens de boa vontade.” A
fé em Deus é tranquilizante para o Cavaleiro. Na gruta de Belém, após ter
rezado, é recompensado: ”Então desceu sobre ele uma grande paz e uma grande
confiança e, chorando de alegria, beijou as pedras da gruta” (p. 13). Deus ouve
as preces do Cavaleiro e responde ao seu pedido de proteção ao intervir,
fazendo surgir diante dele, na floresta, um triângulo iluminado que o
orientaria no regresso a casa.
No
conto, o amor e a noção de família surgem como valores primordiais na vida do
Homem, neste caso do Cavaleiro. Apesar de ausente durante grande parte da
narrativa, a família do Cavaleiro permanece na sua memória, fazendo-o correr
todos os riscos necessários ao cumprimento da promessa de regressar a casa. É
por amor à família e respeito pela promessa que a ela fizera que o Cavaleiro
recusa os convites do Mercador de Veneza, do banqueiro de Florença e do
negociante flamengo para que se associasse aos seus negócios.
Sendo
um conto que circulou de boca em boca pelos países do Norte, O Cavaleiro da Dinamarca contém
caraterísticas da literatura oral e tradicional. Verificamos assim a tendência
para estruturas de conteúdo tipificadas, a escassez da componente descritiva
das personagens e dos lugares visitados pelo Cavaleiro, centrando-se mais a
narrativa na acção e no diálogo, privilegiando a expressão simplificada baseada
no substantivo e no verbo: “Nessa floresta morava com a sua família um
Cavaleiro. Viviam numa casa construída numa clareira rodeada de bétulas” (p.
5).
Presentes no
conto estão também algumas expressões formulísticas auxiliadoras da memória:
”Ali rezou toda a noite”, “Rezou muito, nessa noite, o Cavaleiro” (p. 13), “Viram aqueles que estão cobertos por
chuvas de lama, viram os que são
eternamente arrastados em tempestades de vento, viram os que moram dentro do fogo e viram os traidores presos em lagoas de gelo.” (p. 36)
Como
característica do conto tradicional, na obra em questão, temos a indeterminação
do espaço: “Passado o Natal o
Cavaleiro demorou-se ainda dois meses na Palestina visitando os lugares que
tinham visto passar Abraão e David, os lugares que tinham visto passar a Arca
da Aliança, o cortejo da Rainha do Saba e seus camelos carregados de perfumes,
os exércitos da Babilónia, as legiões romanas e Cristo pregando às multidões”
(p. 14), do tempo: “Há muitos anos,
há dezenas e centenas de anos” (p. 5), e das personagens centrais: o Cavaleiro, o mercador de Veneza, o
banqueiro Averardo e o negociante flamengo não têm um nome próprio, não são
caracterizadas nem física nem psicologicamente.
Outra
característica do conto é ainda a brevidade da narrativa, a economia e a
elementaridade do universo semântico, que caracterizam o discurso. Também é de
notar a frequência do adjectivo belo:
“belas igrejas”, “a rapariga mais bela de Veneza”; e de maravilhoso: “maravilhoso perfume”, “quadros maravilhosos”.
A
forte densidade simbólica das componentes figurativas através do recurso a
“motivos-tópicos” e a “leis tradicionais da épica” é outra caraterística
própria do conto. Assim, temos a presença de números simbólicos da tradição
como o sete, número da pluralidade das coisas: “sete homens com sete punhais”,
“sete planetas”; e o três: “E daí a três dias”, “três pequenos cofres” , “três
quilómetros de marcha” ; o “pão com mel” e o “leite quente”, alimentos muito
importantes na Bíblia, sendo o mel e o leite alimentos de origem animal,
extraídos tal qual da natureza. Simbólicos são também os nove círculos do
inferno e os nove círculos do céu por onde Dante passa durante a sua viagem ao
reino dos mortos. A floresta, o cavalo, o triângulo de estrelas luminosas, a
árvore e a fogueira são outros elementos de grande carga simbólica. A floresta
representa para o Cavaleiro um lugar de perigo. É lá que ele é confrontado com
animais perigosos: os lobos, ligados ao fantástico, e o urso. O cavalo
acompanha sempre o cavaleiro na viagem de regresso: o cavalo que o mercador lhe
oferece e o cavalo que um amigo da povoação vizinha lhe empresta. A lareira em
casa do Cavaleiro, em casa do banqueiro e, no fim do conto, em casa dos
lenhadores, transmite calor e alegria.
A
assinalar a presença do sobrenatural temos a oração dos Anjos que o Cavaleiro
julga ouvir, cantada por multidões, na gruta; a viagem sobrenatural de Dante
através do reino dos mortos, a sombra de Virgílio que se dirige a Dante e o
animal metade leão e metade pássaro que puxa o carro em que vem Beatriz, na
narrativa de Filippo; as estrelas luminosas com que os anjos enfeitaram o abeto
durante o caminho de regresso do Cavaleiro pela floresta. Como elementos do
maravilhoso temos o pente de Vanina, os seus cabelos “loiros e tão compridos
que passavam além da balaustrada” e a escada de seda por onde Vanina desce da
varanda, na narrativa do mercador de Veneza.
Por
tudo o que foi exposto, podemos concluir que o conto O Cavaleiro da Dinamarca, é um exemplo de literatura oral e
tradicional portuguesa, sendo de realçar a presença do maravilhoso e a carga
simbólica que fazem dele uma obra de grande encanto.
Bibliografia
ANDRESEN, Sophia
de Mello Breyner, O Cavaleiro da
Dinamarca, 34ª ed., Figueirinhas, Porto, 1994.
BARREIROS,
António José, História da Literatura
Portuguesa, vol. II - Séc. XIX-XX, 15ª ed., Bezerra – Editora, Braga, 1998.
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