sábado, 10 de março de 2012

Caraterização da personagem de Roberto Clark, em «Mau Tempo no Canal», de Vitorino Nemésio




             Irmão de D. Catarina Clark e filho de Charles William Clark, Roberto Clark, de 37 anos de idade, era «alto, espadaúdo», de «sobrancelhas ruivas, debaixo das quais espreitavam dois olhinhos sem cor precisa» (Cap. IX, p.107), de «olhos azulados» e «gordinho».
            Tendo vivido em Inglaterra desde que emigrara da Horta aos 17 anos, e onde trabalhava como empregado num banco, Roberto desenvolvera um caráter calmo e moderado, ordeiro e conciliador, prático e despretensioso. Era um homem solteiro, meio açoreano, meio britânico, culto, músico e desportista. De índole pachorrento e sério, estava sempre fumando o seu cachimbo.
            O ambiente soturno do casarão do pai não agradava a Roberto, que, para animar o velho Clark, pensara em dar um baile para os amigos e parentes, os quais não via há anos. Decidiu-se que a festa seria no Granel.
       Roberto mostra-se participativo e colaborador ao ajudar na arrumação do Granel. Na noite da festa, Roberto revela os seus conhecimentos musicais ao condescender a tocar uma ária de Haendel, Nos Bosques Aprazíveis. Ao observar a imagem de sua sobrinha Margarida, refletida no espelho fusco do Granel, com o vestido de baile da avó Margarida Terra, Roberto assume um «olhar paternal e impassível» (Cap. X, p.116). Roberto «media o salão de largo a largo» (Cap. X, p.116). Muito atento ao que o rodeia, absorve-se na conversa sobre a hereditariedade de Margarida. Vêm-lhe à lembrança recordações de sua mãe, da vida que levou, fechada em casa, quase sem sair à rua, privada da vida social.
            Roberto gostava de afetar uma certa indiferença pelas coisas do espírito, mas era um homem inteligente, culto, muito dado aos livros. De Londres trouxera o conhecimento enciclopédico, a informação das coleções práticas, das magazines. Lia sobretudo romances, literatura de selva e de navios, tendo trazido para a Horta metade da sua mala com livros, os quais Margarida devorara um pouco.
           Possuindo conhecimentos, Roberto sabia em que condições se processava o contágio da peste que atingira enormemente a cidade da Horta «Mas Roberto insistia que não havia contágio da peste senão ao pé de doentes ou tocando-se nas roupas infetadas» (Cap. XI, p.123). Tinha um sentido muito prático: face à peste ou se fazia a vida habitual ou então desertava-se a cidade. Não era a favor de fechar a gente nova em casa, alimentando o terror.
           Ao contrário de Diogo Dulmo, Roberto Clark chega à cidade com fama de rico, sendo estimado por todos «O Roberto chegou com fama de rico. É tão estimado!». Sempre responsável para com o pagamento das dívidas, difere muito em relação a Diogo Dulmo, arruinado, sem dinheiro, endividado. É por ser rico que Diogo Dulmo tenta persuadir a filha a casar-se com o tio, Roberto Clark, para que os bens fiquem em família «Escuta o pai: o tio Roberto vem aí (...). Ele é um rapaz sério, o que não acontece a todos; sim, porque uma hora cai a casa...entendes?(...) Se ele te agrada, deixa...casa! que fica tudo em família...» (Cap. IV, p. 74).
     Roberto é uma personagem propensa à distração, de temperamento fechado, misterioso e enigmático, assumindo frequentemente «ares de mistério» (Cap. XIV, p.145).
            O seu feitio é tanto doce como brusco, reagindo às notícias com fervor, nomeadamente quando recebe uma carta de Marr sobre uma possibilidade de emprego para Margarida, em Inglaterra.
            De temperamento solitário, o tio Roberto gosta de se refugiar no seu canto, sentindo uma grande tristeza em relação à situação financeira de Diogo Dulmo «Roberto fechou-se no seu quarto (...) Uma grande tristeza tomava-lhe os gestos hesitantes, o olhar como que ausente» (Cap. XXV, p. 233)
       Aquando da fuga de Pedro do colégio, em Lisboa, Roberto mostra-se apaziguador e pacífico ao conter as iras de Diogo Dulmo face ao seu filho, com um sorriso e a mão no ombro do sobrinho.
         Ao regressar à Horta, devido ao estado de saúde do pai, Roberto começou a desenvolver um bom relacionamento com Margarida, sua sobrinha, e protagonista de Mau Tempo no Canal. O tio Roberto mostra-se generoso para com ela quando se propõe a ajudar no pagamento de um novo cavalo para o lugar da Jóia «Com o dobro do dinheiro da Jóia arranja-se um bom cavalo. Eu ponho o resto. É o meu presente de anos» (Cap. IX, p.107).
          Roberto oferece oportunidades e soluções tanto para os problemas de Pedro, ao propor levá-lo para a City  e empregá-lo lá, «Roberto então falou no vago projeto de levar Pedro consigo, e empregá-lo na City. (...) metia-o uns tempos só com rapaziada de criket e camping; fazia-o gente» (Cap. IX, p.109), como para a sobrinha, à qual propôs arranjar emprego em Kensington numa clínica de Marr, como enfermeira, ou secretária, ou ainda ajudante da regente «O Marr tem a clínica em Kensington; está sempre a admitir enfermeiras, raparigas de sociedade. E mesmo que fosse no escritório (...) Ias para lá como ajudante da regente; fazias as honras da clínica...» (Cap. XIV, p.147).
         Há um contraste a nível de personalidade entre o tio Roberto e a sua sobrinha Margarida. «Os hábitos dela, a sua desenvoltura, tinham-no conquistado» (Cap. IX, p.110). Margarida pertencia a «um mundo extenso e difícil» (Cap. IX, p.110). Roberto nutre por ela sentimentos de admiração. A presença de Margarida enchia o tio, apesar de serem de temperamentos diferentes.
             Roberto assemelhava-se a Mary Low, uma amiga de Inglaterra, a quem estava ligado pelos mesmos gostos «e até pela sede de silêncio e de acordo, que era o único excesso ou desmando do seu coração» (Cap. IX, p.110).
              Roberto tinha para com Margarida uma doçura grave e leal «(...) curvava-se sobre ela com uma doçura grave; os seus olhos tinham um brilho penetrante e leal” (Cap. XIX, p.146). A sua relação com Margarida é muito próxima, como que tenta ser o seu confidente, querendo ajudá-la nos seus problemas, dando-lhe o seu apoio moral, a sua solidariedade e a sua amizade «... E em casa do Warren; não se tirava de ao pé de ti. Porque é que não hás-de ser franca?...Então não sou teu amigo?» (Cap. XIV, p.146)
            Roberto é a personagem que mais proporciona à sobrinha momentos de evasão e libertação por ela desejados, nomeadamente através do tempo que passam juntos a andar a cavalo e dos momentos dedicados à navegação.
           Margarida reconhece no tio a amizade e dedicação que ele lhe proporciona, afirmando que ele a enche de mimos e presentes para além de a ensinar a andar a cavalo «Não é só a cavalo; é em tudo! Enche-me de mimos e presentes».(Cap. X, p.117).
            A preocupação que Roberto tinha para com a sobrinha levou-o a tomar a decisão de partir para Inglaterra sem dizer nada, para que a sobrinha pudesse optar por André Barreto, deixando-o associar-se à firma.
        Porém, sem que tenha partido, ocorre a sua morte trágica, na casa da Pedra da Burra, devido a um contágio de peste provocada pela pulga de um rato, talvez no Granel «O tio Roberto falecera nessa madrugada, de peste, na casa da Pedra da Burra (...) Viera com tenção de passar uma noite nas Vinhas; contagiara-se não se sabia bem onde nem como: talvez no Granel, de um rato» (Cap. XXXVI, p. 318).
      Por tudo isto Roberto Clark é, sem dúvida, uma personagem de relevo na obra Mau Tempo no Canal, onde entra e se mantém até à sua morte, quando é vitimado pela peste.


Bibliografia:
Vitorino Nemésio, Mau Tempo no Canal, Obras completas, Vol. VIII, Imprensa Nacional Casa da Moeda, Maio 1994.

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