sábado, 24 de março de 2012

Relação entre «Candide», de Voltaire, e «Discours sur l´origine et les fondements de l'inégalité parmi les hommes», de Rousseau


            Candide e Discours sur l'origine et les fondements de l´inegalité parmi les hommes são obras de caráter filosófico em que é feita uma crítica à injustiça social vigente no séc. XVIII. Candide é um romance de viagens e de aprendizagem que convida o leitor a fazer uma reflexão sobre o problema da religião e a sua influência no quotidiano. No Discours, Rousseau defende que a causa da desigualdade entre os homens é a civilização, que considera a causa de todos os males. Defende, portanto, o regresso ao estado natural do homem.
            Voltaire trata, em Candide, a condição miserável do homem. A felicidade é-nos retratada em Thunder-ten-tronckh, onde reina o amor (Pangloss/ Paquette e Candide / Cunégonde); no Eldorado, onde existe harmonia, em oposição ao resto do mundo; e no jardim de Propontide, onde o amor já está arruinado e onde as personagens cultivam o jardim da sua quinta para não se sentirem entediadas.
 Voltaire pretende mostrar que a felicidade nem sempre é possível. Candide, iludido de início com a perspectiva de encontrar um mundo melhor, acaba dececionado com o mundo, sem sentir mais, no final, amor por Cunégonde. Voltaire mostra assim o seu ceticismo em relação aos sentimentos e às emoções. Conclui-se que não vale a pena termos muitas ambições nem amarmos excessivamente. Não podemos mudar o mundo de forma imediata, mas apenas cuidar do nosso «petit jardin».
O mundo, um caos de horrores para Voltaire, é-nos retratado através das catástrofes naturais que atingem o homem. Exemplos disso são a tempestade e o tremor de terra, causadores da morte de Jacques e da ruína de Lisboa, as epidemias de que sofrem Pangloss e a velha,  o canibalismo, quando os vinte guardas do sultão de Constantinopla comeram dois eunucos e cortaram as nádegas às mulheres para se alimentarem delas, e quando Candide e Cacambo  foram amarrados com cordas para serem mortos. A cena de canibalismo pretende mostrar a insensibilidade dos homens uns para com os outros, consequência da ignorância.
            Voltaire deixa perpassar o seu anticlericalismo, na medida em que considera a Igreja a origem de todo o mal: a Inquisição é-nos retratada por Voltaire através da celebração de um auto de fé, em Lisboa, para que a terra deixasse de tremer. Durante essa celebração, Candide foi açoitado, o biscaio  e os dois homens que não comeram porco foram queimados e Pangloss foi enforcado por não acreditar no pecado original e achar que tudo no mundo está bem e que não podia ser melhor. Esta é a teoria que o filósofo defende ao longo de toda a obra e que Voltaire critica com ironia. O otimismo deve ser combatido, não devemos resignar-nos ao mal.
  Voltaire critica, assim, a intolerância religiosa, o fanatismo da Igreja, o princípio da obscuridade e a superstição, que ele nomeia de «l'infâme». A superstição é contra a humanidade, constitui um obstáculo à felicidade humana.
O problema das guerras é-nos retratado por Voltaire em várias cenas: a guerra da Holanda, a guerra entre árabes e búlgaros, em que é evidente a devastação; as cinquenta guerras civis das filhas do imperador Muley-Ismaël em Marrocos; a guerra em Azof contra os russos; e o combate naval entre o navio holandês e o navio espanhol, que se afundam. O autor pretende mostrar que a humanidade se está a degradar e que os homens são os responsáveis pela sua própria infelicidade. É a ambição dos príncipes pelas riquezas dos outros países que leva à destruição, à guerra  e à morte.     
            Voltaire, enquanto defensor da liberdade do homem, insurge-se contra a escravidão, que é condenada através da cena do escravo de Surinam, sem uma mão e sem uma perna porque, segundo as suas próprias palavras, é hábito dos patrões punir os seus escravos com estas mutilações, quando tentam fugir. Voltaire considerava que a escravidão era contra a humanidade uma vez que os homens são livres por natureza. Por outro lado a escravidão levava à perda de valores morais dos indivíduos.
            A maldade é outro mal censurado por Voltaire. Ele não acredita que o homem é naturalmente bom. Podemos constatar isso ao longo da obra: quando Candide é roubado em Surinam por um patrão que, supostamente, o ia conduzir a Veneza; quando tem de pagar dez mil piastras pelo barulho que fez ao bater à porta e outras tantas pela audiência; e quando um pensador, no teatro, ao lado de Candide, põe defeitos à representação dos atores apesar de estes estarem a desempenhar muito bem o seu papel.
            A violência política também nos é mostrada através de atentados, execuções e revoluções. Todo este ambiente de morte pretende mostrar que o mal existe à face da terra e que muita gente morre sem necessidade. Por outro lado, Voltaire mostra-se contra a forma de governo, que considera despótica, pois tolera e encoraja todo este ambiente de degradação, justificando-o com a providência divina.
            Ao mostrar-nos todo este cenário de devastação, Voltaire tem por objetivo fazer os seus leitores refletir sobre o mal. Para ele, defensor da liberdade de pensamento, cada sujeito devia ter o direito de pensar por si, de fazer uso da razão. Todos os homens são dotados de capacidade crítica, faculdade de julgamento e moral para poderem distinguir o que é justo do que é injusto. A moral é, segundo Voltaire, independente da lei, de contratos e da religião. Ela existe em todos os homens. São as ideias morais que constituem o conjunto de conhecimentos necessários aos homens, todos os outros são desnecessários.
            No artigo Discours sur l'origine et les fondements de l'inegalité parmi les hommes, Rousseau aborda o problema da desigualdade entre os homens, questionado no séc XVIII pelos filósofos, e que ele considera ser uma consequência da civilização.
            Rousseau acredita que o homem, antes de se ter estabelecido a sociedade, era originalmente bom e que o mal surgiu quando a natureza foi submetida à lei. O autor do artigo considera que seríamos muito mais felizes no estado natural, pois evitávamos muito mal. Para ele é a civilização que traz as doenças. No estado natural, só teríamos como moléstias as feridas e a velhice. Defende ainda que o estado natural é o mais próprio à paz e, portanto, o mais conveniente ao género humano.
            Segundo Rousseau, não é o freio da lei, mas a acalmia das paixões e o desconhecimento do vício que impedem os homens de fazer mal: o homem no estado primitivo tem bons sentimentos, como a piedade, e os instintos são bons. Rousseau coloca mesmo a questão se a desordem e os crimes não surgiram com as leis, que pretendiam conter a violência das paixões.
            O autor acaba a primeira parte do artigo defendendo que, no estado natural, não é tão propícia a desigualdade como no estado civilizado: no homem civilizado há mais diferenças a nível da cultura que não existiriam no estado selvagem e, por outro lado, há também a servidão, desconhecida pelo homem natural.
            A segunda parte do artigo é dedicada às possíveis causas da desigualdade entre os homens. Segundo o autor, ela começou quando surgiu a ideia de propriedade. Os homens começaram a guerrear-se para se apoderarem das cabanas que construíam para se abrigarem. As cabanas tornaram-se, assim, um modo de distinção das famílias.
            Quando se começaram a criar ideias de mérito e de beleza e a formar sentimentos de preferência, surgiu a discórdia. Nasceram a vaidade e o desprezo, a inveja e a vergonha, surgiu a ideia de consideração e, como consequência, surgiu a vingança e assim os homens tornaram-se cruéis.
            Com a propriedade, o trabalho tornou-se necessário e surgiu a escravidão e a miséria. O homem, que era livre e independente, foi sujeitado à natureza e aos seus semelhantes. Foi decidido entre os homens que se criariam leis e se protegeriam e defenderiam os membros da associação, de modo a criar harmonia. Rousseau considera que foram as leis que destruíram a liberdade natural do homem ao fixarem a lei da propriedade e da desigualdade.
            Rousseau considera que foi uma grande perda o homem ter renunciado ao maior dos bens que pode ter, a liberdade. Afirma que o homem no estado natural prefere a liberdade à sujeição tranquilizante do homem civilizado.
            Segundo Rousseau, o governo é de natureza ilegítima porque consiste na lei do mais forte, o poder é arbitrário, há corrupção. Por outro lado, o poder soberano, que é sustentado pela vontade divina, intervém para tirar aos sujeitos o direito de dispor. Os cidadãos foram, assim, sacrificados à felicidade do Estado.
            Voltaire e Rousseau diferem em vários aspetos: Voltaire, em Candide, dá a conhecer o mal, que crê vir sobretudo da Igreja. É ela que está na origem da guerra, da injustiça social e a responsável pelo cenário devastador descrito na obra. Por outro lado, a Igreja também condena as paixões e o amor, que Voltaire considera essencial à condição humana como consolo dos males que existem na terra. Rousseau considera que o mal está, não na Igreja, mas nas leis que afastam o homem da sua natureza, que o fazem viver fora das suas emoções, que o corrompem. Voltaire valoriza a razão enquanto que Rousseau atribui mais valor ao sentimento, ao qual dá a primazia. Segundo Voltaire é preciso iluminar os espíritos dos homens para combater o fanatismo e a intolerância religiosa. Rousseau pensa que é necessário voltar ao estado natural e valorizar o sentimento para que haja felicidade.
            Concluindo, estes dois filósofos debatem-se contra a tirania do governo, que consideram despótico, e defendem uma maior justiça social em que este respeite a vontade da nação, em que haja liberdade e igualdade entre os homens.
                                              
Bibliografia
GROETHUYSEN, Bernard, Philosophie de la Révolution Française précédé de Montesquieu, Gallimard, Paris, Outubro, 1992.
ROUSSEAU, Jean-Jacques, Du Contrat Social, Écrits politiques, vol. III, Gallimard, s/l, 1964.
VOLTAIRE, Candide, Classiques Bordas, s/l, Abril, 2003.

sábado, 10 de março de 2012

Caraterização da personagem de Roberto Clark, em «Mau Tempo no Canal», de Vitorino Nemésio




             Irmão de D. Catarina Clark e filho de Charles William Clark, Roberto Clark, de 37 anos de idade, era «alto, espadaúdo», de «sobrancelhas ruivas, debaixo das quais espreitavam dois olhinhos sem cor precisa» (Cap. IX, p.107), de «olhos azulados» e «gordinho».
            Tendo vivido em Inglaterra desde que emigrara da Horta aos 17 anos, e onde trabalhava como empregado num banco, Roberto desenvolvera um caráter calmo e moderado, ordeiro e conciliador, prático e despretensioso. Era um homem solteiro, meio açoreano, meio britânico, culto, músico e desportista. De índole pachorrento e sério, estava sempre fumando o seu cachimbo.
            O ambiente soturno do casarão do pai não agradava a Roberto, que, para animar o velho Clark, pensara em dar um baile para os amigos e parentes, os quais não via há anos. Decidiu-se que a festa seria no Granel.
       Roberto mostra-se participativo e colaborador ao ajudar na arrumação do Granel. Na noite da festa, Roberto revela os seus conhecimentos musicais ao condescender a tocar uma ária de Haendel, Nos Bosques Aprazíveis. Ao observar a imagem de sua sobrinha Margarida, refletida no espelho fusco do Granel, com o vestido de baile da avó Margarida Terra, Roberto assume um «olhar paternal e impassível» (Cap. X, p.116). Roberto «media o salão de largo a largo» (Cap. X, p.116). Muito atento ao que o rodeia, absorve-se na conversa sobre a hereditariedade de Margarida. Vêm-lhe à lembrança recordações de sua mãe, da vida que levou, fechada em casa, quase sem sair à rua, privada da vida social.
            Roberto gostava de afetar uma certa indiferença pelas coisas do espírito, mas era um homem inteligente, culto, muito dado aos livros. De Londres trouxera o conhecimento enciclopédico, a informação das coleções práticas, das magazines. Lia sobretudo romances, literatura de selva e de navios, tendo trazido para a Horta metade da sua mala com livros, os quais Margarida devorara um pouco.
           Possuindo conhecimentos, Roberto sabia em que condições se processava o contágio da peste que atingira enormemente a cidade da Horta «Mas Roberto insistia que não havia contágio da peste senão ao pé de doentes ou tocando-se nas roupas infetadas» (Cap. XI, p.123). Tinha um sentido muito prático: face à peste ou se fazia a vida habitual ou então desertava-se a cidade. Não era a favor de fechar a gente nova em casa, alimentando o terror.
           Ao contrário de Diogo Dulmo, Roberto Clark chega à cidade com fama de rico, sendo estimado por todos «O Roberto chegou com fama de rico. É tão estimado!». Sempre responsável para com o pagamento das dívidas, difere muito em relação a Diogo Dulmo, arruinado, sem dinheiro, endividado. É por ser rico que Diogo Dulmo tenta persuadir a filha a casar-se com o tio, Roberto Clark, para que os bens fiquem em família «Escuta o pai: o tio Roberto vem aí (...). Ele é um rapaz sério, o que não acontece a todos; sim, porque uma hora cai a casa...entendes?(...) Se ele te agrada, deixa...casa! que fica tudo em família...» (Cap. IV, p. 74).
     Roberto é uma personagem propensa à distração, de temperamento fechado, misterioso e enigmático, assumindo frequentemente «ares de mistério» (Cap. XIV, p.145).
            O seu feitio é tanto doce como brusco, reagindo às notícias com fervor, nomeadamente quando recebe uma carta de Marr sobre uma possibilidade de emprego para Margarida, em Inglaterra.
            De temperamento solitário, o tio Roberto gosta de se refugiar no seu canto, sentindo uma grande tristeza em relação à situação financeira de Diogo Dulmo «Roberto fechou-se no seu quarto (...) Uma grande tristeza tomava-lhe os gestos hesitantes, o olhar como que ausente» (Cap. XXV, p. 233)
       Aquando da fuga de Pedro do colégio, em Lisboa, Roberto mostra-se apaziguador e pacífico ao conter as iras de Diogo Dulmo face ao seu filho, com um sorriso e a mão no ombro do sobrinho.
         Ao regressar à Horta, devido ao estado de saúde do pai, Roberto começou a desenvolver um bom relacionamento com Margarida, sua sobrinha, e protagonista de Mau Tempo no Canal. O tio Roberto mostra-se generoso para com ela quando se propõe a ajudar no pagamento de um novo cavalo para o lugar da Jóia «Com o dobro do dinheiro da Jóia arranja-se um bom cavalo. Eu ponho o resto. É o meu presente de anos» (Cap. IX, p.107).
          Roberto oferece oportunidades e soluções tanto para os problemas de Pedro, ao propor levá-lo para a City  e empregá-lo lá, «Roberto então falou no vago projeto de levar Pedro consigo, e empregá-lo na City. (...) metia-o uns tempos só com rapaziada de criket e camping; fazia-o gente» (Cap. IX, p.109), como para a sobrinha, à qual propôs arranjar emprego em Kensington numa clínica de Marr, como enfermeira, ou secretária, ou ainda ajudante da regente «O Marr tem a clínica em Kensington; está sempre a admitir enfermeiras, raparigas de sociedade. E mesmo que fosse no escritório (...) Ias para lá como ajudante da regente; fazias as honras da clínica...» (Cap. XIV, p.147).
         Há um contraste a nível de personalidade entre o tio Roberto e a sua sobrinha Margarida. «Os hábitos dela, a sua desenvoltura, tinham-no conquistado» (Cap. IX, p.110). Margarida pertencia a «um mundo extenso e difícil» (Cap. IX, p.110). Roberto nutre por ela sentimentos de admiração. A presença de Margarida enchia o tio, apesar de serem de temperamentos diferentes.
             Roberto assemelhava-se a Mary Low, uma amiga de Inglaterra, a quem estava ligado pelos mesmos gostos «e até pela sede de silêncio e de acordo, que era o único excesso ou desmando do seu coração» (Cap. IX, p.110).
              Roberto tinha para com Margarida uma doçura grave e leal «(...) curvava-se sobre ela com uma doçura grave; os seus olhos tinham um brilho penetrante e leal” (Cap. XIX, p.146). A sua relação com Margarida é muito próxima, como que tenta ser o seu confidente, querendo ajudá-la nos seus problemas, dando-lhe o seu apoio moral, a sua solidariedade e a sua amizade «... E em casa do Warren; não se tirava de ao pé de ti. Porque é que não hás-de ser franca?...Então não sou teu amigo?» (Cap. XIV, p.146)
            Roberto é a personagem que mais proporciona à sobrinha momentos de evasão e libertação por ela desejados, nomeadamente através do tempo que passam juntos a andar a cavalo e dos momentos dedicados à navegação.
           Margarida reconhece no tio a amizade e dedicação que ele lhe proporciona, afirmando que ele a enche de mimos e presentes para além de a ensinar a andar a cavalo «Não é só a cavalo; é em tudo! Enche-me de mimos e presentes».(Cap. X, p.117).
            A preocupação que Roberto tinha para com a sobrinha levou-o a tomar a decisão de partir para Inglaterra sem dizer nada, para que a sobrinha pudesse optar por André Barreto, deixando-o associar-se à firma.
        Porém, sem que tenha partido, ocorre a sua morte trágica, na casa da Pedra da Burra, devido a um contágio de peste provocada pela pulga de um rato, talvez no Granel «O tio Roberto falecera nessa madrugada, de peste, na casa da Pedra da Burra (...) Viera com tenção de passar uma noite nas Vinhas; contagiara-se não se sabia bem onde nem como: talvez no Granel, de um rato» (Cap. XXXVI, p. 318).
      Por tudo isto Roberto Clark é, sem dúvida, uma personagem de relevo na obra Mau Tempo no Canal, onde entra e se mantém até à sua morte, quando é vitimado pela peste.


Bibliografia:
Vitorino Nemésio, Mau Tempo no Canal, Obras completas, Vol. VIII, Imprensa Nacional Casa da Moeda, Maio 1994.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Análise do romance «Bela Infanta»

                                        Bela Infanta

                                                                                                                
                                                           Estava a bela infanta
                                                           No seu jardim assentada,
                                                           Com o pente d’oiro fino
                                                           Seus cabelos penteava.
                                                           Deitou os olhos ao mar
                                                           Viu vir uma nobre armada;
                                                           Capitão que nela vinha;
                                                           Muito bem que a governava.
- “Dize-me, ó capitão
Dessa tua nobre armada.
Se encontraste meu marido
Na terra que Deus pisava.”
- “Anda tanto cavaleiro
Naquela terra sagrada
                                                           Dize-me tu, ó senhora,
                                                           As senhas que ele levava”
- “Levava cavalo branco,
Selim de prata doirada;
Na ponta da sua lança
A cruz de Cristo levava.”
- “Pelos sinais que me deste
Lá o vi numa estacada
Morrer morte de valente:
Em sua morte vingava.”
- “Ai triste de mim, viúva,
Ai triste de mim, coitada !
De três filhinhas que tenho,
Sem nenhuma ser casada !...”
- “Que darias tu, senhora,
A quem no trouxera aqui ?”
- “Dera-lhe oiro e prata fina,
 Quanta riqueza há por i.
- “Não quero oiro nem prata,
Não vos quero para mi:
Que darias mais, senhora,
A quem no trouxera aqui ?”
- “De três moinhos que tenho,
Todos três tos dera a ti;
Um mói o cravo e a canela,
Outro mói do gerzeli:
Rica farinha que fazem !
Tomara-os el-rei p’ra si.”
- “Os teus moinhos não quero,
Não nos quero para mi:
Que darias mais, senhora,
A quem to trouxera aqui ?”
- “As telhas do meu telhado
Que são de oiro e marfim.”
- “As telhas do teu telhado
Não nas quero para mi:
Que darias mais, senhora,
A quem no trouxera aqui ?”
- “De três filhas que eu tenho,
Todas três te dera a ti:
Uma para te calçar,
Outra para te vestir,
A mais formosa de todas
Para contigo dormir.”
- “As tuas filhas, infanta,
Não são damas para mi:
Dá-me outra coisa, senhora,
Se queres que o traga aqui.”
- “Não tenho mais que te dar,
Nem tu mais que me pedir.
- “Tudo, não, senhora minha,
Que inda te não deste a ti.”
- “Cavaleiro que tal pede,
Que tão vilão é de si,
Por meus vilões arrastado
O farei andar aí
Ao rabo do meu cavalo.
À volta do meu jardim.
Vassalos, os meus vassalos,
Acudi-me agora aqui !”
- “Este anel de sete pedras
Que eu contigo reparti...
Que é dela a outra metade ?
Pois a minha, vê-la aí !“
- “Tantos anos que chorei,
Tantos sustos que tremi !...
Deus te perdoe, marido,
                                                           Que me ías matando aqui.”         


            A Bela Infanta, uma das mais belas narrativas poéticas da tradição oral portuguesa, é de inquestionável origem medieval. Surgiu no século XVI, tempo das grandes navegações, quando os homens deixavam suas mulheres e se lançavam ao mar sem certeza de retorno. Esta versão foi recolhida na Beira Baixa e embelezada por Almeida Garret, quem pela primeira vez em Portugal iniciou o trabalho de recolha, estudo e publicação da nossa poesia tradicional oral, cujo resultado deu origem a três volumes intitulados Romanceiro (1851). Bela Infanta «é sem questão a mais geralmente sabida e cantada de nossas xácaras populares» afirma Garret.
            Neste romance, o tema principal é o regresso do marido que a infanta espera sentada no seu jardim. O tempo da ação é indeterminado, pois as marcas temporais não são precisas. Porém, podemos afirmar que a ação se desenrola numa época histórica, o tempo da Expansão e das Cruzadas: «Viu vir uma nobre armada;», «Se encontraste meu marido / Na terra que Deus pisava.», «Na ponta da sua lança / A cruz de Cristo levava.» Este foi um período da história que alterou a estrutura familiar: o homem partia para a guerra, estando ausente do lar em terras distantes, enquanto a mulher ficava em casa aguardando a chegada do marido daí a uns anos. No caso de Bela Infanta, podemos verificar o elemento feminino, a infanta, que se encontra nesta situação: há anos que o seu marido partiu em viagem para terras longínquas e também há anos que ela espera ansiosamente a chegada do marido, a quem se mantém fiel até ao fim do romance.
            Podemos caraterizar o marido da infanta através dos sinais que ela dá ao cavaleiro para que este lhe dê notícias sobre o marido, de quem aguarda pacientemente o regresso: «- Levava cavalo branco, / Selim de prata doirada; / Na ponta da sua lança / A cruz de Cristo levava.» Deste modo, é de realçar o papel deste cavaleiro valoroso, de espírito guerreiro e de cruzada, amante a Deus, que defendia a cristandade do ataque dos infiéis.
            O capitão da armada, que não se identifica logo como marido da infanta, sujeita-a a um conjunto de provas plenas de simbolismo para testar a fidelidade da mulher. Assim, começa por lhe dizer que, pelos sinais que a infanta lhe dera, o viu morrer numa estacada: «- pelos sinais que me deste / Lá o vi numa estacada / Morrer morte de valente: / Em sua morte vingava.», ao que a infanta responde : «- Ai triste de mim, viúva, / Ai triste de mim, coitada! / De três filhinhas que tenho, / Sem nenhuma ser casada!... ». O amor é evidente nesta expressão de pesar que sugere o claro sofrimento da infanta pela morte do marido e pela situação em que deixa as três filhas, por casar.
            O segundo passo dado pelo capitão é perguntar à infanta o que daria ela como recompensa a quem lhe trouxesse o seu marido. A infanta disponibiliza-se, então, a fazer uma série de ofertas ou dádivas que representam o estatuto social e económico (classe nobre) e que nos permitem identificá-la como uma fidalga abastada. Através de várias sequências a infanta mostra o seu despojamento total para reaver o marido: «Dera-lhe oiro e prata fina, / Quanta riqueza há por i.», «- De três moinhos que tenho, / Todos três tos dera a ti; / Um mói o cravo e a canela, / Outro mói do gerzeli: / Rica farinha que fazem! / Tomara-os el-rei p’ra si.», «- As telhas do meu telhado / Que são de oiro e marfim.», «- De três filhas que eu tenho, / Todas três te dera a ti: / Uma para te calçar, / Outra para te vestir, / A mais formosa de todas / Para contigo dormir.»
            Cada uma das figuras principais constituintes das provas tem um valor simbólico. O «oiro», a «prata fina» e toda a riqueza que haja são bens materiais bastante valiosos. O ouro é o mais precioso dos metais, é o metal perfeito, é o símbolo da riqueza material, é, pois, por sua vez, o princípio ativo, masculino, solar. A prata é o símbolo da pureza, está ligada à dignidade real, representa a sabedoria divina, é o princípio passivo feminino, lunar, aquoso, frio. O moinho é o recetáculo ou o veículo de uma força sagrada, encerrada no som da palavra, que se pode mover em benefício próprio. O número três, que qualifica quer o número de moinhos da infanta, quer o número de filhas que tem, é universalmente um número fundamental, é o número perfeito, expressão da totalidade, da conclusão. O marfim é o símbolo da pureza, o símbolo do poder por ser material de grande dureza.
            Apesar da riqueza dos bens que a infanta se predispõe a oferecer-lhe, o cavaleiro vai recusando as várias ofertas: «- Não quero oiro nem prata / Não vos quero para mi: / Que darias mais, senhora, / A quem no trouxera aqui ?», «As telhas do teu telhado / Não nas quero para mi: / Que darias mais, senhora, / A quem no trouxera aqui ?», «As tuas filhas, infanta, / Não são damas para mi: / Dá-me outra coisa, senhora, / Se queres que o traga aqui.» Por fim, o cavaleiro faz uma proposta à infanta, a de que ela se entregue a ele, proposta essa que é mal recebida pela infanta que se sente ofendida e que leva ao desejo que o cavaleiro seja castigado: «- Cavaleiro que tal pede, / Que tão vilão é de si, / Por meus vilões arrastado / O farei andar aí / Ao rabo do meu cavalo. À volta do meu jardim. / Vassalos, os meus vassalos, /  Acudi-me agora aqui !» Este é um castigo típico da época da narrativa e da classe a que a mulher pertence.
            É de salientar neste romance a presença dos valores nobres próprios de um estrato nobre-cavaleiresco e de uma comunidade através da personagem «bela infanta», a qual se revela fiel ao negar-se ao capitão, forte e determinada quando o ameaça com uma punição, nobre de espírito pela conduta que segue, e de grande respeito. As ofertas que propõe mostram também a sua humildade, nomeadamente quando se predispõe a ceder as suas três filhas ao capitão.
            No final do romance, o cavaleiro revela a sua verdadeira identidade ao mostrar à infanta o anel que diz ter repartido com ela e de que ela tem a outra metade. A repartição do anel está relacionada com a origem etimológica (grega) da palavra «símbolo», pois a este anel partido e depois reajustado, os antigos chamavam «symbolon». O anel serve para indicar uma ligação, para «vincular», é o signo de uma aliança, de um meio de reconhecimento, é o símbolo de um poder ou de um laço que nada pode quebrar. Em Bela Infanta, o anel é o símbolo e prova da união do marido e da mulher. O reconhecimento do marido é feito pelo anel. A repartição do anel serviu de símbolo à separação do casal. Quando o cavaleiro regressa da guerra, mostra a sua metade à infanta, juntando-se as duas metades, o que simboliza a união de novo dos esposos.
            Atualmente, a palavra «símbolo» designa um signo que representa um objeto através de uma relação natural e intrinsecamente motivada. De igual modo, o anel é um símbolo, designa uma realidade: a união, o compromisso do casal. «Símbolo» e anel têm, portanto, em comum o facto de remeterem para uma realidade.
            Podemos reconhecer nesta composição o valor das componentes discursivas narrativa e dramática. A componente épica não está de todo ausente (a referência aos apetrechos de guerra e à vida guerreira em «terra sagrada»). De facto, reconhecemos algumas marcas narrativas, poucas: marcas subjetivas de tempo (o tempo da Expansão e das Cruzadas), de espaço: o jardim onde a «bela infanta» aguarda a chegada do marido, as personagens (a infanta e o capitão, e alguns elementos que nos permitem a caraterização das mesmas).
            Por outro lado, verificamos que o texto, que se apresenta maioritariamente em forma de diálogo, obedece a uma estrutura interna de modelo dramático: temos, em primeiro lugar, a exposição com a apresentação das personagens (a «bela infanta» e o capitão), e a apresentação da situação que é responsável pelo desenrolar da história (quando a infanta avista a chegada da armada), o que vem alterar a ordem inicial. Constitui, pois, o elemento desestabilizador. A situação perturbadora é acentuada quando a infanta pergunta ao capitão da armada se viu o seu marido nas terras longínquas por onde andou. Em segundo lugar, temos o momento da identificação do mundo pelo cavaleiro e a notícia de que o cavaleiro o viu morrer (momento de forte intensidade dramática em que a situação perturbadora se acentua). Num terceiro momento, temos a expressão de pesar pela luta da infanta e a apresentação das propostas que não são aceites pelo capitão da armada. Num quarto momento, temos a presença do conflito: quando o cavaleiro propõe à infanta que se entregue a ele; o que constitui o elemento desencadeador e, ao mesmo tempo, o clímax (momento de grande intensidade dramática) e a ameaça da infanta ultrajada. Num momento final, temos o desfecho ou o desenlace com a resolução do conflito através da revelação da verdadeira identidade do capitão, o que permite que a ordem seja restabelecida. O romance acaba abrutamente com a revelação da identidade por parte do cavaleiro.
O anel é o elemento unificador do encontro com a verdade dos factos. O número sete simboliza um ciclo completo, uma perfeição dinâmica. O sete indica o sentido de uma mudança depois de um ciclo concluído e de uma renovação positiva, é o número da conclusão cíclica e da sua renovação, o símbolo duma totalidade em movimento ou de um dinamismo total, indica a passagem do conhecido para o desconhecido. No romance, as sete pedras do anel repartido remetem para o fim de um ciclo (o da ausência do marido da infanta que termina com o seu regresso) e para a fidelidade dos heróis.
Podemos estabelecer um paralelo entre a «bela infanta» deste romance com a Penélope do grande clássico da literatura que é a Odisseia de Homero. Tal como a infanta, também Penélope é o paradigma da fidelidade conjugal, pois esperou anos pelo regresso do marido, Ulisses, que esteve ausente da sua terra Ítaca, e do seu lar porque esteve na guerra de Tróia. Tendo muitos pretendentes que a tentam conquistar, Penélope, tal como a infanta, mantém-se fiel ao marido até ao último momento. O regresso do marido é ansiosamente desejado por ela que pede continuamente informações sobre ele, com quem se preocupa. Esta preocupação e desejo de regresso do marido é também evidente na infanta.
Em relação ao estatuto social também verificamos a mesma situação: tanto Penélope como a «bela infanta» pertencem à realeza, pois uma é esposa do rei de Ítaca e a outra é infanta.
Penélope e a infanta possuem o dom da beleza: «bela infanta» e a beleza dada por Atenas a Penélope. Ambas esperaram longos anos pela chegada dos respetivos maridos e, como tal, no momento do regresso, já não são muito novas: a infanta tem três filhas em idade de casar e Penélope tem um filho já crescido. Ambas são esposas e mães.
Os valores afetivos e morais ocupam um lugar relevante neste romance e na Odisseia através do amor e da fidelidade que caraterizam e dominam a ação da infanta e de Penélope. Ambas possuem uma nobreza de caráter que permite que permaneçam fiéis aos respetivos maridos.
Tal como o marido da infanta, Ulisses não se dá logo a conhecer, ele faz-se passar por um mendigo e só reconhece a sua identidade a Penélope após ter feito a prova do tiro de flecha que o reconheceria como Ulisses. O mesmo se passa na Bela Infanta: o marido só dá a conhecer a sua verdadeira identidade depois de mostrar o seu anel.
Como é próprio da literatura tradicional, neste romance estão presentes vários motivos-tópicos, tais como o ato de pentear os cabelos que qualifica a infanta; o pente (que, simbolicamente, dá força, nobreza, capacidade de elevação espiritual à individualidade); a «nobre armada» que qualifica o capitão na sua apresentação; o «cavalo branco» e o «selim de prata doirada» que caraterizam a classe a que o marido da infanta pertence; as senhas do marido; as «três filhas» que simbolizam a perfeição e a revelação da verdadeira identidade pelo marido.
A popularidade deste romance é, sem dúvida, merecida e provavelmente deve-se aos vários exemplos de contaminação dos temas da balada europeia, entre os quais o lirismo inerente à situação de espera da infanta sentada no seu jardim; as «provas» com que o marido sujeita a esposa, carregadas de simbolismo, e o reconhecimento pelo «anel» que o tornam numa linda composição.
Após a leitura deste romance, podemos concluir que é um belíssimo romance de tradição novelesco em que as virtudes do caráter e a fidelidade feminina ocupam um lugar de destaque numa estrutura de progressão dramática que atinge um clímax e a que se segue um desfecho de final feliz.    

Bibliografia:

- GRAÇA, Natália Maria Lopes Nunes, Formas do Sagrado e do Profano na Tradição Popular, Edições Colibri, Lisboa, 2000.
- PINTO-CORREIA, João David, Romanceiro Oral da Tradição Portuguesa, Edições Duarte Reis, Lisboa, 2003.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Análise do Soneto LVI, de Francisco de Rioja (1583-1659)

                      SONETO LVI


      Prende sutil metal entre la seda
que el pelo envuelve y ciñe ilustremente,
el rico lazo que de excelsa frente
sobre el puro alabastro en punta queda;
     o prende la vistosa pompa y rueda
del traslúcido velo refulgente
debajo el cuello tierno y floreciente,
en quien o ni el pesar ni el tiempo pueda;
     que en mí será tu aguda punta ociosa,
y de nuevo herir o dar favores
no puede outra virtud en ti escondida,
     mientras hay viva nieve y blanda rosa,
y en desmayados ojos resplandores
árbitros de la muerte y de la vida.

            Neste belíssimo soneto é evidente a mestria do autor no que respeita ao trabalho do verso e ao depuramento da linguagem. Perfeito formalmente, em versos decassilábicos, rima perfeita e aguda, esta composição apresenta, por meio de uma estrutura complexa, a figura de uma mulher que se assemelha em tudo à mulher petrarquista.
         A figura central deste soneto possui as caraterísticas de uma mulher ideal. As suas feições não são fortemente individualizadas. O retrato que aqui se delineia é o da mulher em geral, como que a mais nobre abstração da beleza feminina.
          Esta mulher é perfeita na sua beleza à maneira de Petrarca: a sua face é «excelsa», a sua pele branca rosada, (se não, vejamos a metáfora «puro alabastro», ou ainda «viva nieve»), a sua boca, pela cor vermelha comparada a uma rosa, é «blanda rosa», os seus olhos são de cor clara e de grande atrativo: «desmayados ojos resplandores». 
Também sobressai a sua graça, que cativa o sujeito poético e que, neste soneto, nos é sugerida por meio de adjetivos ou advérbios encarecedores. Assim, é graciosa a sua imagem com o cabelo apanhado num rico laço: «la seda / que el pelo envuelve y ciñe ilustremente», o aspeto deslumbrante que se associa à aura divina: «la vistosa pompa», «traslúcido velo refulgente», a ternura que nos é sugerida através da sinédoque «cuello tierno y floreciente.» A beleza do seu colo mantém-se inalterada apesar do sofrimento e do tempo que passa e que, supostamente, deixaria marcas: «el cuello tierno y floreciente, / en quien o ni el pesar ni el tiempo pueda». O elemento feminino conserva, deste modo, a sua beleza e juventude.
            É de notar o forte impressionismo da linguagem de Rioja neste soneto que, por meio de metáforas, nos apresenta um quadro bastante pictórico da mulher amada. O aspecto visual é muito marcado nesta composição. O retrato da mulher amada é-nos dado através de fortes impressões visuais: o laço que prende os cabelos loiros do elemento feminino: «Prende sutil metal [...] el rico lazo que de excelsa frente / sobre el puro alabastro en punta queda». De notar o pormenor com que é descrito o modo como o laço se encontra na cabeça da figura feminina. Há toda uma riqueza de pormenores descritivos que conduz à visualização da imagem: «el rico lazo que de excelsa frente sobre el puro alabastro en punta queda;»
            Na segunda quadra, é-nos descrito o laço que se prolonga para além do colo da figura feminina: «Y rueda [...] debajo el cuello tierno y floreciente,» Temos então uma imagem visual riquíssima, pormenorizadamente descrita. A subjetividade não está ausente do poema, pois a imagem da mulher amada é-nos sugerida por meio de impressões sensoriais fortemente visuais: “vistosa pompa”, “velo refulgente”, «cuello tierno y floreciente,», «ojos resplandores».
            O amor que o sujeito poético sente pela mulher é um amor puro, que procura libertar-se da mácula da sensualidade como meio de ascender à contemplação divina. A imagem desta mulher é quase divina, envolve-a uma certa aura, como se de uma deusa se tratasse. Por outro lado, o véu também pode significar uma barreira que separa o homem da mulher amada que se oculta por detrás do véu, o qual, por ser translúcido, deixa passar a luz mas não permite ver os contornos da imagem. A mulher está, assim, envolta num certo ar de mistério: «traslúcido velo refulgente.»
          Importante é também determo-nos sobre a expressão «tu aguda punta ociosa», «tu» este que se refere ao elemento feminino. Esta aguda ponta retoma a ponta do laço do v. 4, significando, porém, aqui o poder de sedução, uma como que flecha que atinge quem se deixa seduzir e que é, neste caso, o sujeito poético: «que en mi será tu aguda punta ociosa». É feita então uma analogia entre este poder de sedução e a ponta do laço que, terminando em bico, é comparado à capacidade de seduzir, que é penetrante.
            Este poder de sedução do elemento feminino sobre o elemento masculino que dá a voz no poema, provém dos olhos da dama que constituem um atrativo e são a fonte de sedução desta mulher. Como é habitual desde a Idade Média, os olhos possuem uma grande valorização na lírica amorosa, surgem aqui como uma metáfora. É pelo olhar que ela seduz: «que en mi será tu aguda punta ociosa [...] y en desmayados ojos resplandores». O olhar é o reflexo, o espelho da alma, transmite o poder de sedução.
A forma do verbo «ser» não tem aqui o mesmo significado que a forma do mesmo verbo implícita no v. 13. No primeiro caso, a expressão «en mi será» significa que o sujeito poético é o alvo da capacidade de sedução desta mulher, aparece-nos com o sentido de «ter efeito». No v. 13 a forma verbal implícita «será» surge-nos semanticamente como o lugar de proveniência, a fonte. Por outro lado, estes olhos têm um grande poder de atuação sobre o sujeito poético, eles determinam sobre a vida ou a morte deste: «y en desmayados ojos resplandores / árbitros de la muerte y de la vida». Os olhos claros e brilhantes da mulher amada determinam a esperança ou a ilusão do sujeito poético (aqui homem apaixonado) em relação a ser ou não correspondido no amor. A ponta ociosa aqui mencionada e que retoma a ponta do laço por um processo de analogia, pode ser comparada à flecha de Cupido que pode feri-lo (atraí-lo) ou então corresponder-lhe no amor. Mais nenhuma outra virtude que possa existir nela pode desalentá-lo ou dar-lhe esperança. No soneto XII de Garcilaso também a mulher nos é apresentada como possuidora de virtudes que se opõem: ela é fonte de candura e ternura, mas também a mulher fatal que guarda distância e impõe respeito.
A relação de superioridade desta dama face ao sujeito poético mostra-se no facto de ele estar completamente dependente das ações desta mulher que o domina e que podem ser-lhe benéficas ou nocivas: «y de nuevo herir o dar favores / no pueda outra virtud en ti escondida;». Se ainda há aqui alguma esperança em ser correspondido amorosamente, no soneto LIV de Rioja não há nenhuma. A mulher amada suscita nele a chama ardente que ele procura em vão apagar.
         Salienta-se o engenho do poeta que se reflete numa composição de estrutura complexa como esta, que pouco tem de transparente. O soneto inicia-se com uma forma verbal, «Prende», seguida do sujeito «sutil metal», e de complementos: «entre la seda / que el pelo envuelve y ciñe ilustremente», só aparecendo depois o objeto direto «el rico lazo». Verificamos assim que há uma inversão do sujeito e da ordem habitual das frases. A inclusão de orações que funcionam como complemento é uma constante ao longo do texto, facto que dificulta enormemente a compreensão do soneto, ao mesmo tempo que lhe confere um certo ar de artifício. Temos então várias orações intercaladas que enriquecem o texto e ao mesmo tempo ofuscam a compreensão: «que el pelo envuelve y ciñe ilustremente», que se refere à seda do laço da mulher amada; «que de excelsa frente / sobre el puro alabastro en punta queda;» referente ao laço; «del traslúcido velo refulgente», «en quien o ni el pesar ni el tiempo pueda;» referente ao pescoço, «mientras hay viva nieve y blanda rosa,».
          Neste soneto torna-se evidente a preocupação com a beleza da linguagem, a qual é testemunho de um grau de perfeição e refinamento que se comprovam pela utilização de termos encarecedores que conferem nobreza à figura aqui representada. Temos então a presença de adjetivos: «sutil metal», «excelsa frente» e de um advérbio «ilustremente» para designar a nobreza do aspeto da mulher amada com o cabelo apanhado com um laço. A linguagem com que este retrato é feito é claramente positiva e enobrecedora.
          Podemos concluir que esta composição, de influência marcadamente petrarquista, reflete um trabalho de grande mestria que confere uma enorme beleza ao soneto.

Bibliografia
 -CHIAPPINI, Caetano, Fernando de Herrera y la Escuela Sevillana, Taurus, Madrid, 1985.
-Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, Vol. XXI, Editorial Enciclopédia, Limitada, Lisboa, s/d.

Breve exposição sobre o conto "O Cavaleiro da Dinamarca", de Sophia de Mello Breyner Andresen



Sophia de Mello Breyner Andresen (Porto, 6 de Novembro de 1919 – Lisboa, 2 de Julho de 2004) é um dos maiores símbolos da literatura moderna portuguesa, tendo sido a primeira mulher portuguesa a receber o Prémio Camões, em 1999. Escreveu em verso as obras: Poesia (1944), Dia do Mar (1947), Coral (1950), No Tempo Dividido (1954), Mar Novo (1958), O Cristo Cigano (1961), Livro Sexto (1962), Geografia (1967), 11 Poemas  (1969), Grades  (1970), Dual  (1972), O Nome das Coisas  (1977), Ilhas  (1989), Obra Poética, 3 vols. (1990-1991), Musa (1994). É autora dos livros de contos para crianças e jovens: A Menina do Mar (1957), A Fada Oriana (1958), Noite de Natal (1960), O Cavaleiro da Dinamarca (1964), O Rapaz de Bronze (1965), O Tesouro (1968), A Floresta (1969), Contos da Terra e do Mar (1984). A obra Contos Exemplares (1962) destina-se a adultos.
            O conto O Cavaleiro da Dinamarca é uma narrativa infanto- -juvenil que procura traçar o percurso de um cavaleiro dinamarquês que, deixando a sua família, enceta uma peregrinação à Terra Santa. A narrativa conta-nos as peripécias dessa viagem, bem como o seu regresso ao lar.
            A narrativa inicia-se durante uma noite de Natal, numa floresta dinamarquesa, de onde é originária a personagem principal, a qual vai realizar um itinerário que vai compor uma narrativa com uma duração de dois anos e com um espaço muito variado, mas que permite uma certa circularidade. A narrativa termina no mesmo ponto de partida, a floresta, e no mesmo dia, na noite de Natal.
            O Cavaleiro deixa, na Primavera, a sua floresta e dirige-se para o porto mais próximo de onde embarca e chega às costas da Palestina, seguindo dali com outros peregrinos para Jerusalém, onde visita os lugares santos. Permanece dois meses na Palestina e, em fins de Fevereiro, inicia a viagem de regresso: parte para Jafa, na companhia de outros peregrinos, entre os quais um mercador de Veneza. Após uma breve tempestade, chegam à cidade de Ravena, nas terras de Itália. Daí seguem para Veneza onde o Mercador o aloja no seu palácio. Passa por Ferrara e por Bolonha em Abril e, no princípio de Maio, chega a Florença, onde é hospedado pelo banqueiro Averardo, para o qual trazia uma carta de recomendação enviada pelo Mercador. Daí segue para Génova, parte em viagem até Bruges e chega à Flandres no Inverno, de onde parte para Antuérpia com uma carta de recomendação do banqueiro Averardo para um negociante flamengo que o acolhe em sua casa. Após uma viagem dura e de frio, o Cavaleiro chega, na antevéspera do Natal, ao fim da tarde, a uma pequena povoação próxima da sua floresta e, na madrugada do dia seguinte, o dia 24 de Dezembro, o Cavaleiro parte para a floresta e chega então à pequena aldeia dos lenhadores. Seguindo o curso de um rio, procura chegar a sua casa, o que acontece no final do conto. Este é o percurso do Cavaleiro.
            As diferenças entre a viagem da ida e a viagem de regresso são claras e gritantes: o movimento de ida é motivado pelo sentido religioso do Cavaleiro que anuncia durante a ceia de Natal a sua intenção de visitar os lugares santos e passar o Natal seguinte na gruta de Belém; pelo contrário, a viagem de regresso permite ao Cavaleiro a obtenção de vários conhecimentos. O enriquecimento do Cavaleiro acontece a vários níveis e de várias formas: pela descoberta de novas terras, hábitos e costumes e pelo contacto com outros homens, com outros conhecimentos e com as suas histórias, fruto de outras realidades. O Cavaleiro mostra-se espantado e maravilhado com tudo o que vê e ouve.
           Se a beleza arquitetónica de Ravena surpreende o Cavaleiro, mais ainda ele se espanta com a beleza de Veneza. O Cavaleiro deslumbra-se com os canais onde deslizam as gôndolas, com a arquitetura, com o modo de vestir dos venezianos. À noite, no palácio do mercador de Veneza, prova ricos manjares.    
Florença é outra cidade que surpreende o protagonista pela sua beleza geográfica e pela sua riqueza arquitetónica e cultural. Nela o cavaleiro viu torres, campanários, cúpulas, diversas lojas, praças largas, estátuas e visitou conventos, palácios, bibliotecas e igrejas. Em casa do banqueiro Averardo pôde verificar uma preciosa biblioteca e lindos quadros. Aos serões acumulava conhecimento ao ouvir “as sábias conversas dos amigos de Averardo” sobre fenómenos naturais, ciências, arte, poesia, música, arquitetura.
            Tendo adoecido a caminho de Génova, bate à porta de um convento, onde é cuidado pelos frades e pode assim conhecer a realidade dos conventos: ouvia os cânticos religiosos e admirava as pinturas dos frescos. A paz que reinava no convento deu forças ao cavaleiro de tal modo que o ajudou a recuperar.
           Em Antuérpia, o Cavaleiro conhece, em casa do negociante da Flandres, uma nova gastronomia: espanta-se com o paladar da comida temperada com especiarias desconhecidas e surpreende-se com a abundância de bens preciosos como as pérolas, o oiro e a pimenta.
          Outra forma de obtenção de conhecimentos é através de uma série de narrativas encaixadas na narrativa principal. A primeira é a narrativa do mercador de Veneza, que surge a propósito da pergunta do Cavaleiro sobre quem morava no palácio, do outro lado do canal. Então o veneziano responde que mora lá Jacob Orso e seus criados e conta a história de Vanina que em tempos também lá morava com ele, mas que, por amor, fugiu com Guidobaldo. Segue-se a narrativa de Filippo, um dos amigos do banqueiro Averardo, em Florença, que surge a propósito de uma discussão sobre a obra de Giotto, a meio do jantar. Questionado pelo Cavaleiro, Filippo explica que Giotto foi um pintor, discípulo de Cimabué, de tal modo célebre no seu tempo que Dante fala dele n’ “A Divina Comédia”, poema onde conta a sua viagem através do reino dos mortos. A última é a narrativa de um dos capitães dos navios do negociante flamengo que recebe o Cavaleiro em Antuérpia e que conta a sua experiência de navegador pelas costas de África.
          Fulcral no conto em análise é a questão da religiosidade. São vários os momentos em que as personagens, sobretudo o Cavaleiro, dão conta do seu Cristianismo, da sua Fé inabalável e do seu amor a Deus, sendo por Ele recompensadas com milagres ou outros acontecimentos que denotam uma intervenção divina. O Cavaleiro mostra o seu amor a Deus quando decide passar o Natal na gruta de Belém onde rezou toda a noite. Também na viagem de regresso, perdido no meio dos perigos da floresta, reza a Deus a oração dos Anjos: “- Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens de boa vontade.” A fé em Deus é tranquilizante para o Cavaleiro. Na gruta de Belém, após ter rezado, é recompensado: ”Então desceu sobre ele uma grande paz e uma grande confiança e, chorando de alegria, beijou as pedras da gruta” (p. 13). Deus ouve as preces do Cavaleiro e responde ao seu pedido de proteção ao intervir, fazendo surgir diante dele, na floresta, um triângulo iluminado que o orientaria no regresso a casa.
            No conto, o amor e a noção de família surgem como valores primordiais na vida do Homem, neste caso do Cavaleiro. Apesar de ausente durante grande parte da narrativa, a família do Cavaleiro permanece na sua memória, fazendo-o correr todos os riscos necessários ao cumprimento da promessa de regressar a casa. É por amor à família e respeito pela promessa que a ela fizera que o Cavaleiro recusa os convites do Mercador de Veneza, do banqueiro de Florença e do negociante flamengo para que se associasse aos seus negócios.
           Sendo um conto que circulou de boca em boca pelos países do Norte, O Cavaleiro da Dinamarca contém caraterísticas da literatura oral e tradicional. Verificamos assim a tendência para estruturas de conteúdo tipificadas, a escassez da componente descritiva das personagens e dos lugares visitados pelo Cavaleiro, centrando-se mais a narrativa na acção e no diálogo, privilegiando a expressão simplificada baseada no substantivo e no verbo: “Nessa floresta morava com a sua família um Cavaleiro. Viviam numa casa construída numa clareira rodeada de bétulas” (p. 5).
Presentes no conto estão também algumas expressões formulísticas auxiliadoras da memória: ”Ali rezou toda a noite”, “Rezou muito, nessa noite, o Cavaleiro” (p. 13), “Viram aqueles que estão cobertos por chuvas de lama, viram os que são eternamente arrastados em tempestades de vento, viram os que moram dentro do fogo e viram os traidores presos em lagoas de gelo.” (p. 36)
Como característica do conto tradicional, na obra em questão, temos a indeterminação do espaço: “Passado o Natal o Cavaleiro demorou-se ainda dois meses na Palestina visitando os lugares que tinham visto passar Abraão e David, os lugares que tinham visto passar a Arca da Aliança, o cortejo da Rainha do Saba e seus camelos carregados de perfumes, os exércitos da Babilónia, as legiões romanas e Cristo pregando às multidões” (p. 14), do tempo: “Há muitos anos, há dezenas e centenas de anos” (p. 5), e das personagens centrais: o Cavaleiro, o mercador de Veneza, o banqueiro Averardo e o negociante flamengo não têm um nome próprio, não são caracterizadas nem física nem psicologicamente.           
         Outra característica do conto é ainda a brevidade da narrativa, a economia e a elementaridade do universo semântico, que caracterizam o discurso. Também é de notar a frequência do adjectivo belo: “belas igrejas”, “a rapariga mais bela de Veneza”; e de maravilhoso: “maravilhoso perfume”, “quadros maravilhosos”.
            A forte densidade simbólica das componentes figurativas através do recurso a “motivos-tópicos” e a “leis tradicionais da épica” é outra caraterística própria do conto. Assim, temos a presença de números simbólicos da tradição como o sete, número da pluralidade das coisas: “sete homens com sete punhais”, “sete planetas”; e o três: “E daí a três dias”, “três pequenos cofres” , “três quilómetros de marcha” ; o “pão com mel” e o “leite quente”, alimentos muito importantes na Bíblia, sendo o mel e o leite alimentos de origem animal, extraídos tal qual da natureza. Simbólicos são também os nove círculos do inferno e os nove círculos do céu por onde Dante passa durante a sua viagem ao reino dos mortos. A floresta, o cavalo, o triângulo de estrelas luminosas, a árvore e a fogueira são outros elementos de grande carga simbólica. A floresta representa para o Cavaleiro um lugar de perigo. É lá que ele é confrontado com animais perigosos: os lobos, ligados ao fantástico, e o urso. O cavalo acompanha sempre o cavaleiro na viagem de regresso: o cavalo que o mercador lhe oferece e o cavalo que um amigo da povoação vizinha lhe empresta. A lareira em casa do Cavaleiro, em casa do banqueiro e, no fim do conto, em casa dos lenhadores, transmite calor e alegria.
            A assinalar a presença do sobrenatural temos a oração dos Anjos que o Cavaleiro julga ouvir, cantada por multidões, na gruta; a viagem sobrenatural de Dante através do reino dos mortos, a sombra de Virgílio que se dirige a Dante e o animal metade leão e metade pássaro que puxa o carro em que vem Beatriz, na narrativa de Filippo; as estrelas luminosas com que os anjos enfeitaram o abeto durante o caminho de regresso do Cavaleiro pela floresta. Como elementos do maravilhoso temos o pente de Vanina, os seus cabelos “loiros e tão compridos que passavam além da balaustrada” e a escada de seda por onde Vanina desce da varanda, na narrativa do mercador de Veneza.
            Por tudo o que foi exposto, podemos concluir que o conto O Cavaleiro da Dinamarca, é um exemplo de literatura oral e tradicional portuguesa, sendo de realçar a presença do maravilhoso e a carga simbólica que fazem dele uma obra de grande encanto.


Bibliografia
ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner, O Cavaleiro da Dinamarca, 34ª ed., Figueirinhas, Porto, 1994.
BARREIROS, António José, História da Literatura Portuguesa, vol. II - Séc. XIX-XX, 15ª ed., Bezerra – Editora, Braga, 1998.